“Precisamos de mais jornalismo que encare as grandes verdades”
Em janeiro de 2021, uma semana depois de supremacistas brancos invadirem o Capitólio, em Washington, sob ordens do então presidente Donald Trump, os ouvintes do podcast Scene on Radio receberam uma notificação. Não era um novo episódio, e sim um recado do apresentador, o radialista John Biewen, de 60 anos: “Até pensamos em gravar um bônus, mas o que tínhamos a dizer sobre tudo isso nós já dissemos”. Biewen convidava o público a escutar a recém-encerrada quarta temporada, sobre a história cheia de falhas da democracia americana, e as duas anteriores, sobre branquitude e masculinidade.
Criado em 2015, o Scene on Radio se destacou no concorrido cenário americano de podcasts por encarar temas amplos, mapeando, ano a ano, problemas estruturais do país. Depois de uma primeira temporada com episódios variados, a segunda, lançada em 2017 com o título Seeing White, investigou o papel dos brancos na manutenção do racismo. A terceira, em 2018, tinha o autoexplicativo título MEN (assim mesmo, em maiúsculas). E a quarta foi ao ar no primeiro semestre de 2020, durante a turbulenta campanha presidencial nos EUA, batizada com um verso do poeta Langston Hughes: The Land That Never Has Been Yet (“a terra que ainda não chegou a ser”, em tradução livre).
Com mais de 30 anos de experiência em rádio, Biewen é professor e diretor do curso de áudio do Center for Documentary Studies na Duke University. No podcast, ele conecta os grandes temas ao dia a dia dos ouvintes, com uma abordagem que mescla jornalismo narrativo, pesquisa histórica e debate de ideias. Para mostrar como os americanos brancos se iludem sobre o racismo nos EUA, por exemplo, ele dedica um episódio de Seeing White a reconstituir um massacre de indígenas cometido no século 19 na cidadezinha de Mankato, em Minnesota. É a maior execução em massa de todos os tempos nos EUA, mas foi tão apagada da história que o próprio Biewen, que cresceu lá, mal tinha ouvido falar disso.
Para ampliar esses debates, o Scene on Radio tem a cada temporada um apresentador convidado, que ajuda a formular o podcast e, no bloco final dos episódios, conversa com Biewen sobre os temas do programa. O jornalista, ativista e professor Chenjerai Kumanyika participa das séries sobre racismo e democracia. E a radialista e escritora Celeste Headlee, da série sobre masculinidade.
Em junho, a série sobre democracia concorre a um dos principais prêmios do jornalismo americano, o Peabody. Enquanto isso, Biewen prepara a quinta temporada, que vai ao ar no segundo semestre de 2021 e trata de outro tema crucial: o colapso climático. Nesta entrevista por e-mail, ele conta como funciona o Scene on Radio e diz que, em meio à crise da imprensa tradicional, podcasts podem ser o veículo para um jornalismo mais aprofundado: “Acabamos realizando uma série de projetos que parecem agradar aos ouvintes justamente porque ousamos fazer as grandes perguntas. E fomos em busca das respostas – com firmeza, mas com calma, no nosso ritmo, caminhando junto com os ouvintes enquanto aprendíamos, e tentando tornar a jornada interessante e divertida”.
Você já tinha uma longa carreira no rádio quando começou a trabalhar com podcasts. Como foi essa transição para você? Que possibilidades o podcast ofereceu para o seu trabalho, em comparação com o rádio tradicional?
Desde os anos 1980, eu fazia reportagens e documentários para o sistema público de rádio, trabalhando em equipes de estações locais e de grandes redes. Em 2006, comecei a tocar projetos no Center for Documentary Studies (CDS) na Duke University, e tentava emplacá-los em programas de rádio ou distribuí-los para estações como especiais de uma hora de duração. Então sugeri para meus chefes no CDS que era hora de abrir nosso próprio selo editorial – um podcast – e eles concordaram. Muitas vezes eu me via frustrado pelas limitações da rádio pública – de tempo, de formato, de assunto. Quando criamos o Scene on Radio, em 2015, sabíamos que estávamos fazendo uma grande troca: por um lado, completo controle editorial e criativo, mas, por outro, uma audiência pequena, pelo menos de início. Seis anos mais tarde, eu não poderia estar mais feliz por ter dado essa guinada. Nossa audiência ainda é um pouco menor (na casa das centenas de milhares de ouvintes por episódio, em comparação aos milhões de um programa da NPR), mas eu faria tudo de novo diante da profundidade do que estamos entregando ao público. Sinto que agora estamos colocando no mundo algo mais valioso do que era possível fazer no rádio.
Quais eram seus principais objetivos quando você montou o curso de áudio na Duke? E como essa ligação com a universidade ajudou na criação do Scene on Radio?
Depois de uma “residência” de muitos anos no CDS, produzindo especiais para a American RadioWorks, a divisão de documentários da American Public Media, fui efetivado como diretor de áudio do CDS em 2006. Quando o então diretor do CDS, Tom Rankin, me contratou para montar o curso de áudio, concordamos que eu daria algumas aulas – tanto na graduação quanto na extensão – enquanto fazia documentários para a rádio pública com apoio do CDS. Anos mais tarde, quando o podcast já tinha amadurecido enquanto formato (nessa época o diretor era Wesley Hogan, sucessor de Tom), decidimos começar o que se tornaria o Scene on Radio.
O CDS é um lugar excepcional para fazer o que fazemos no programa. Não enfrento as exigências econômicas que as produtoras de podcast colocam sobre os criadores (“produza X episódios por ano, e eles precisam dar lucro”). Nem as limitações ideológicas que muita gente enfrenta na mídia tradicional, com o “dois-ladismo” da “objetividade” jornalística. O Scene on Radio é um podcast com uma missão, dentro de uma instituição que também tem uma missão. Posso levar todo o tempo necessário para fazer uma pesquisa aprofundada, elaborar essas séries e lançá-las quando estiverem prontas. Não tenho uma equipe de produção (ainda!), mas não sou um indie trabalhando no meu porão, tenho um salário e (com ajuda de doações dos ouvintes) um orçamento para viajar e contratar colaboradores. Sem falar no apoio de infraestrutura do Centro – comunicação, gerenciamento de internet, captação de recursos.
Depois de uma primeira temporada com temas variados, Scene on Radio passou a dedicar temporadas inteiras a grandes temas (branquitude, patriarcado, democracia), com uma abordagem muito particular: uma mistura de jornalismo narrativo, história cultural e debate de ideias. É como uma arqueologia de antigas estruturas que sustentam a sociedade. Como você chegou a esse formato?
O modelo foi definido na segunda temporada, Seeing White. Para aquela série, eu me peguei fazendo perguntas que me lançaram numa investigação histórica profunda, começando com: quem inventou as raças? Como a noção de chamar alguns de “brancos” e outros de “negros” se formou, e por quê? E o que as repostas a essas perguntas dizem sobre a supremacia branca e sobre como ela opera hoje?
De certa forma, segui mais ou menos a abordagem tradicional de um documentário: entreviste especialistas, faça com que eles contem histórias e expliquem coisas, contextualize e costure tudo com narração e desenho de som. O bloco de cada episódio dedicado a uma conversa, naquela temporada com o brilhante Chenjerai Kumanyika, surgiu pelas razões que expliquei no programa: eu precisava do reforço de alguém que não fosse branco, para apontar meus pontos cegos enquanto homem branco, e para trazer uma perspectiva diferente e bem-informada que ajudasse a extrair lições dos episódios. Depois aplicamos o mesmo modelo na terceira temporada, MEN, que explorava o patriarcado e sua história, dessa vez em colaboração com a igualmente brilhante Celeste Headlee.
Outro ingrediente nessa mistura é sua perspectiva sobre esses grandes temas. Especialmente nas temporadas 2 e 3, em que você examina suas experiências como homem branco. Quais foram os desafios para encontrar o tom certo no uso da primeira pessoa, sem transformar Scene on Radio em um podcast sobre você?
Não quis fazer de mim mesmo o assunto dessas séries. Escrevi alguns trechos em primeira pessoa porque senti que era essencial reconhecer a importância da perspectiva. Eu não podia fazer uma série realmente honesta sobre branquitude sem colocar minha própria branquitude em primeiro plano desde o início. O fato de o apresentador e idealizador de Seeing White se identificar como branco era relevante – assim como, na série MEN, o fato de eu ser um homem branco cis. Tendo admitido isso, eu pude então acrescentar pitadas da minha perspectiva de vez em quando, uma história aqui, uma observação ali, se fosse útil para o material e para as verdades que estávamos tentando contar. E podia passar episódios inteiros sem falar nada sobre mim.
Quais foram as maiores contribuições que os outros apresentadores dessas séries, Chenjerai Kumanyika e Celeste Headlee, trouxeram para o podcast?
Eles tiveram papéis ligeiramente diferentes, de acordo com suas preferências. Celeste é uma jornalista e apresentadora de rádio com muita estrada, então, na série MEN, ela assumiu parte das minhas funções de âncora, além de desempenhar o papel de comentarista nas nossas conversas ao fim de cada episódio. Chenjerai, tanto na segunda quanto na quarta temporada, preferiu se posicionar mais claramente como um comentarista, ou “colaborador-conversador”, como às vezes me referi a ele. Eles trouxeram uma compreensão aguda que eu muitas vezes não tinha, nascida de suas experiências como um homem negro e uma mulher de origens multirraciais nos Estados Unidos. Às vezes eles traziam algo a mais: uma dose de raiva que eu, como um homem branco privilegiado, não necessariamente sentia, ainda que enxergasse a injustiça bruta do tema que estivéssemos debatendo.
Você pode descrever a estrutura da equipe de produção do Scene on Radio? Em termos de roteiro, reportagem e desenho de som, o que você espera de um bom episódio?
O podcast se beneficia muito do trabalho desses colaboradores ocasionais (Chenjerai, Celeste) que, para além das nossas conversas gravadas, oferecem comentários sobre o conteúdo do programa. Recebo sugestões de roteiro dos editores freelancers que eventualmente consigo contratar (Loretta Williams nas temporadas 2 e 4, Cheryl Devall na temporada 5, que está em preparação). De resto, a “equipe de produção” do podcast sou eu: planejando, pesquisando, apurando, gravando entrevistas e cenas, fazendo a mixagem e o desenho de som. Tenho a sorte de trabalhar com um grande consultor musical – Joe Augustine, da Narrative Music, de Nova York – que sugere faixas de compositores de trilha sonora que trabalham com ele.
O que eu espero encontrar/escutar em um episódio? Clareza no foco – qual é a questão central aqui? – e na estrutura. Uma sensação de movimento, mas que não pareça apressado. Uma mescla de “tons”: descrição e análise, pura narrativa e, quando possível, cenas gravadas no mundo lá fora. Uma experiência de escuta que seja esteticamente prazerosa e suave – sobretudo porque as histórias e as realidades que tentamos comunicar são difíceis de digerir.
A quarta temporada foi ao ar durante uma campanha presidencial em que a própria ideia de democracia estava no centro dos debates. E no ano passado muitos ouvintes descobriram a segunda temporada depois do assassinato de George Floyd, quando racismo estrutural e supremacismo branco viraram temas nacionais nos Estados Unidos. Na sua opinião, como o jornalismo pode abordar melhor esse tipo de assunto, mais amplo e profundo, para colaborar com o debate público?
Eu não tinha como prever isso, mas acabamos realizando uma série de projetos que parecem agradar aos ouvintes justamente porque ousamos fazer as grandes perguntas, aquelas sobre o elefante na sala. O que está acontecendo – mesmo – com a branquitude e as chamadas pessoas brancas? Como foi que chegamos nesse esquema homem-domina-mulher e quais são os custos reais disso – para todos nós? Espera aí, será que os poderosos alguma vez quiseram que os Estados Unidos fossem uma democracia de verdade? E então fomos em busca das respostas para essas perguntas – com firmeza, mas com calma, no nosso ritmo, caminhando junto com os ouvintes enquanto aprendíamos, e tentando tornar a jornada interessante e divertida.
É um sinal dos nossos tempos, acho, que as pessoas estejam sedentas por esse tipo de coisa. Muita gente está se dando conta de que os problemas das nossas sociedades são profundos e estruturais. Então, um podcast documental que resolve enfrentar essa (gostei da descrição) “arqueologia de antigas estruturas que sustentam a sociedade” – um programa como esse acaba conseguindo encontrar um público agora.
Grande parte do jornalismo – inclusive a maior parte do que eu fazia antes do Scene on Radio – só arranha a superfície. Examina os sintomas e frequentemente evita e encobre aquelas antigas estruturas. Ou pior, contribui para que as classes dominantes permaneçam em negação sobre a existência e a força dessas estruturas. Gosto de trabalhos documentais que fazem todo tipo de coisa – que contam histórias pequenas e intimistas, que exploram a visão ou a estética singulares do seu criador. Mas a humanidade vive uma crise profunda e grave, e precisamos de mais jornalismo, mais documentários, que encarem as grandes verdades.