Entre parentes e personagens: produzindo um podcast sobre a própria família
Por mais estranho que pareça, pode ser mais fácil investigar uma história distante do que narrar um universo já conhecido – ou aparentemente conhecido –, como os relacionamentos e as origens de nossa própria família. Especialmente quando não se tem um sobrenome facilmente rastreável em documentos antigos ou um passado europeu que deixou pistas nos registros oficiais, a tarefa de construir uma árvore genealógica e afetiva passa por longas conversas com pais, mães, tias, primos e avós.
No podcast Raízes, o produtor e apresentador Caio Cavalcante dos Santos se coloca numa dessas empreitadas e vai além: entrelaça as histórias apagadas ou escondidas de seus parentes – do passado e do presente – com temas atemporais que tocam o público de maneira mais ampla, como religiosidade, pobreza, embates políticos e diferentes tipos de laços familiares – como o que se cria entre uma sogra e sua nora.
Caio é cientista político e fundador da produtora Griot Podcasts, sediada em Recife. Ele e seu projeto Raízes foram selecionados na primeira edição do Sound Up Brasil, um programa do Spotify para acelerar novos podcasts. Depois de dois anos de maturação, a primeira temporada foi lançada em 18 de julho, com episódios semanais. O apoio financeiro conquistado para a criação do Raízes permitiu que Caio contratasse uma equipe para ajudá-lo em diversas frentes, mas nada substitui a contribuição de Dálete Santos, sua mãe, que entra como narradora em alguns trechos do podcast e também atua na produção.
Se na temporada de estreia a proposta de Caio foi olhar para seus próprios laços, preenchendo lacunas de uma trajetória com raízes indígenas e africanas, a ideia é que as temporadas seguintes apresentem árvores bastante diferentes. “Muita gente que é preta que tem feito conteúdo pensando nessa cura, né? Nessa coisa de que a gente precisa começar um novo passo na nossa história, um novo passo para o povo preto. Mas tem a galera que precisa fazer esse exercício também e fazer uma autocrítica. Então eu gostaria de mexer nessa ferida pelo outro lado, pelo lado de uma família branca com raízes escravagistas.”
Você já tinha a ideia do Raízes antes de se inscrever no programa Sound Up Brasil?
Eu não tinha a ideia do Raízes até praticamente o momento da inscrição. Quando eu recebi a chamada do programa, eu estava no corre de outras coisas, terminando mestrado e produzindo o Chié. E aí um dia, de noite, eu parei pra ler a chamada e pensei, mano, esse negócio é pra mim. Eu estava indo dormir e comecei a fazer a inscrição no celular mesmo. Só que comecei a escrever sobre um outro projeto, acho que era o Política é Massa, meu podcast de política – porque como eu não sou um comunicador formado, eu tinha muito mais segurança de ir para um assunto que eu domino. Só que aí, mana, quando eu tava na metade da inscrição, eu parei e falei “isso tá uma merda, vou apagar”. E apaguei tudo. Fiquei pensando: se eu tivesse todos os recursos necessários, que história eu gostaria de contar?
Aí veio na cabeça a minha avó paterna e meu avô materno, porque são pessoas que eu tive contato na infância e já ouvi muitas e muitas histórias. Histórias engraçadas, tristes, revoltantes, histórias dizendo que eles eram cabulosos, problemáticos e estavam errados, mas também histórias muito cativantes deles. E eu queria ter um jeito de registrar isso, para não perder. Daí entendi que era esse o tipo de coisa que eu queria contar, queria falar de família. Já veio na cabeça esse mote do registro, da oralidade. Nessa época eu sabia que o podcast ia ser narrativo e sabia que ia contar histórias de pessoas comuns, mas ainda não tinha decidido começar pela narrativa da minha própria família – esse foi um conselho que recebi de Paulinha [Paula Scarpin, da Rádio Novelo] durante o Sound Up. E aí foi assim, eu mandei. E rolou.
Como foi o processo de encontrar e escolher as histórias que seriam contadas?
Cada episódio tem um tema maior além da história de uma pessoa da minha família, que é esse tema gancho, esse tema meio universal. A gente fala de cuidados com pessoas idosas que passam por doenças severas, a gente vai falar depois sobre intolerância religiosa dentro da família, sobre violência doméstica. E mainha [Dálete Santos] ajudou muito no processo de filtrar e desenvolver os temas e as histórias. E ela ajuda a dissolver esses pesos, porque ela praticamente viu ou participou de quase todos esses acontecimentos. Ela é psicóloga de formação, mas é uma matraca e uma comunicadora nata, só não estudou para isso [Caio contou que ela também solta muito spoiler por aí].
Eu quis que ela participasse da produção porque eu herdei dela essa curiosidade de olhar a linhagem, falar das pessoas, pegar essas histórias. Eu dizia “preciso de alguém para falar sobre a infância da minha avó”, e ela dizia “tem esse primo aqui que foi criado junto com ela na infância, então ele tem essas memórias”. E aí fui conversar com esse primo e foi muito legal. Os detalhes da época que ele traz, ele contando das cartas que recebia da minha avó, ele se emociona…
Você descobriu muita coisa nova sobre a sua família durante a produção?
Cara, descobri. E outras pessoas da família foram descobrindo também. Teve uma coisa até meio sutil, mas que marcou muito, que foi um detalhe meio escondido na história de vida do meu pai. Teve também um primo que apareceu. Porque eu fiz uma conta no My Heritage [plataforma para rastrear pontes genealógicas] para poder visualizar a família toda, e aí um primo desconhecido me achou e foi atrás da gente. Ele também é um cara que já tinha curiosidade para isso e tal, e trouxe mais informações sobre a família, que vão aparecer no final da temporada.
Mas eu também fui descobrindo coisas das pessoas que eu já conhecia muito – ou que eu achava que conhecia muito, mas não conhecia tanto assim, em detalhes. É uma investigação que eu indico pra qualquer pessoa, porque é muito interessante. Mas precisa fazer muita terapia também. Eu preciso tirar umas férias depois da temporada porque é tudo muito denso, muito cheio de nós e amarrações.
E como foi abordar os seus familiares para conseguir as entrevistas? Você tinha que explicar muito o que estava tentando fazer?
Tinha que explicar muito, falar o que era, contar porque eu queria falar sobre os temas delicados. E eu sempre, nas entrevistas, reforço que aquilo pode ir para o ar. Uma das coisas que está me dando mais ansiedade e apreensão é como essas pessoas vão se sentir a partir desse retrato que a gente faz no podcast. Tem sempre as pessoas que se emocionam muito falando do personagem x ou y, e também tem o tipo de pessoa que conta histórias que eu não esperava. Histórias de tretas… algumas eu coloquei no podcast, porque não tem como.
Pois é. Eu fico pensando que, ok, eu entrevisto um monte de gente, mas se alguém não gostar do que eu falei no podcast, paciência. Não é como se eu tivesse que conviver com os meus entrevistados no dia a dia. Como você lidou com isso?
Uma coisa que resolve muito é você ser muito sincero. Sempre, em todos os momentos, eu falo “se a senhora não quiser, não precisa falar”. O que funcionou comigo é justamente o fato de eu me importar, sabe? De deixar claro que essa história é importante pra mim, que eu valorizo essas pessoas. A confiança que eu recebi das pessoas é a parte legal, isso foi foda. E aí o fato de você ser da família é importante. Até por isso o meu plano para os próximos passos do Raízes é trazer outras pessoas para contarem as histórias das suas próprias famílias. A nossa equipe vai produzir, vai escrever, mas a gente precisa que a pessoa traga a voz dela para a história ter um peso, ter a força do sentimento que eu estou passando nessa temporada.
Não tive problema com ninguém da minha família até agora, não tive entrevistas difíceis – só uma que eu saí irritadíssimo [ao lidar com uma parte mais conservadora da família]. Mas no final o que eu tento fazer é não julgar. Às vezes é tentador ir pelo caminho de vilanizar certas pessoas, e eu tento não fazer isso. Mas eu também não quero passar a mão na cabeça de ninguém. É um equilíbrio difícil de alcançar, e nisso ajuda ter alguém na equipe de roteiro que não é da família, como tem o Renan Sukevicius. Porque aí eu não fico nem muito de homenagens nem muito porradeiro. A gente acha o ponto certo.
Imagino que as tantas histórias de uma família não caibam em uma só temporada. Teve muita dor ao deixar coisas de fora?
Não teve dor, mas teve dúvidas sobre se era justo ou não eu tirar algo da história. Porque algumas coisas iam além da minha capacidade de lidar, são temas que eu não saberia tratar devidamente. Mas as partes que eu tive mais dor no coração de ter tirado foram as mais engraçadas, porque não dá pra deixar só engraçado. A gente trabalha o roteiro no estilo gangorra mesmo, a gente está em cima, vai pra baixo, aí volta pra cima e ri, depois chora, aí conta um negócio ruim e volta pra acalmar e fazer um cafuné.
É um pouco o caso do primeiro episódio, que eu conto que o meu bisavô matou uma pessoa e depois eu digo “não vou definir ele por um crime” – que é um crime das raízes da gente também, porque ele matou um parente, meu tataravô, o sogro dele. Isso é grande, mas não vou definir ele só com base nisso. Por outro lado, muitas vezes eu ouço uma entrevista que a gente fez e começo a rir, mas não dá pra por, não encaixa na narrativa. Aí fica pra outro momento. Uma coisa que a gente fez pra colocar esses áudios que eu gosto muito sem interferir na narrativa foi a cena pós-crédito, que aparece a partir do segundo episódio.