Como encontrar sua voz
No começo de novembro, o Spotify lançou o podcast Vidas Negras, com produção da Rádio Novelo, que celebra a vida de personalidades negras de ontem e hoje — de Carolina Maria de Jesus a Sueli Carneiro. Além das histórias e vozes presentes em cada episódio, outro ingrediente logo fisgou os ouvidos do público: a narração macia de Tiago Rogero, jornalista que comanda o programa.
Alguns dias depois do lançamento, ele abriu o jogo no Twitter: fazer a apresentação soar tão fácil e natural dá trabalho. Se desvencilhar de hábitos antigos de locução também. E um ponto que surpreendeu seus seguidores foi a menção à cantora estadunidense Billie Eilish como uma das referências para seu jeito de narrar. Billie canta baixinho, sem esforço aparente, e pertinho do microfone. Como quem conta algo no pé do ouvido de outra pessoa. De certa forma, era parecido com o que Tiago queria fazer.
A trajetória de Tiago no jornalismo falado começou mais de uma década atrás, quando estava na graduação e começou um estágio na Band News FM de Belo Horizonte, onde acabou ficando por cerca de três anos. Nesse período, ele fez aulas de respiração e aprendeu como usar a voz no rádio, num estilo mais projetado e rápido do que costumamos ouvir em podcasts, especialmente nos narrativos.
Depois da passagem pela Band News FM, ele trabalhou como repórter dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, só voltando para a frente do microfone em 2019, ano em que lançou uma série especial em áudio sobre história negra brasileira para O Globo, chamada Negra Voz, e passou por uma fellowship do International Center for Journalists (ICFJ) focada na produção de podcasts.
Os dois acontecimentos já começaram a transformar seu jeito de narrar, mas, segundo ele, ainda não era o ideal. “O maior desafio foi desconstruir o que eu já tinha aprendido, porque eu tinha construído minha voz para o rádio. Por mais que eu só tenha retornado ao áudio dez anos depois, foi como andar de bicicleta. Você não esquece e fica ainda aquela memória”. Faltavam ajustes no ritmo de fala e na entonação para chegar ao que ele e a equipe da Rádio Novelo imaginavam para o Vidas Negras.
O Tiago contou ao Cochicho como foi o processo de encontrar a voz ideal e a conversa rendeu dicas valiosas para quem também está passando do rádio para o podcast.
1. Convoque ajuda. Se a ideia é narrar de maneira fluida e informal, o truque é sempre imaginar que você está falando com alguém.
“Antes de começar a trabalhar com a Novelo, às vezes eu pedia para alguém ficar no estúdio comigo durante a gravação. Outras vezes eu levava uma pelúcia que eu tinha, de um dos sete anões, e colocava na minha frente, como se estivesse conversando com ela. Aí, quando fui para os Estados Unidos para a fellowship do ICFJ, vi lá uma figura que eu ainda não conhecia aqui no Brasil: a da direção de locução, alguém que te escuta e te ajuda enquanto você grava. Depois fui encontrar isso na Novelo, com a Flora Thomson-DeVeaux. A Flora foi determinante para encontrar essa voz.”
2. Perceba as palavras. Narrar um roteiro não é simplesmente ler. Existem momentos da história que precisam de ênfase em uma parte ou outra, ou exigem leves mudanças de tom. Esteja atento ao que o texto diz e, claro, verifique se ele está adequado para a oralidade, com frases fluidas e termos coloquiais.
“Às vezes a gente dá peso para a palavra errada, ou então pode sentir que ficou com muita interpretação num trecho, ou mesmo com pouca interpretação. Antes de irmos ao estúdio pela primeira vez, eu e Flora passamos uma tarde ao telefone experimentando. Eu fiquei me gravando com um gravador que tenho em casa e a Flora ficou na linha. ‘Agora tá perto, agora tá longe’.”
3. Dose o volume e o ritmo. Boa parte das pessoas escuta podcasts usando fone de ouvido. É importante que a narração seja gostosa de ouvir.
“Antes minha locução era muito projetada. Com certa frequência, eu terminava de falar as frases e percebia que estava sem fôlego. Agora, além de ser uma narração mais confortável para o ouvinte, eu não perco mais o fôlego.”
4. Busque inspiração. Liste apresentadores e narradores que você gosta de ouvir e tente identificar o que eles fazem de diferente.
“A Billie Eilish é muito interessante porque eu não ouço tanto as músicas dela, mas eu sei que ela canta baixinho e próximo do microfone. Por isso eu pensei nela como inspiração, mas eu tenho outras referências de locução. Por exemplo, a Branca Vianna [Praia dos Ossos e Maria vai com as outras] tem uma locução muito gostosa de ouvir e é conversacional, assim como a do Thiago André, do História Preta. E ele também já falou que passou por esse processo de ir encontrando a própria voz. Uma locução de alguém fora do Brasil que acho muito interessante é a Madeleine Baran, do podcast In the Dark.”