Praia dos Ossos: um podcast de assassinato que não é um típico true crime

Praia dos Ossos: um podcast de assassinato que não é um típico true crime

Série documental da Rádio Novelo reconta a história de Ângela Diniz e os desdobramentos de sua morte

Paula Scarpin, diretora de criação da Rádio Novelo, tem interesse particular por histórias de crime. Gosta não só de vasculhar e narrar casos de mortes e falcatruas —  quando repórter da piauí, escreveu, por exemplo, sobre a tabela de recompensas do Disque-Denúncia carioca e o assassinato de Marcos Matsunaga —, mas também de acompanhar produções do gênero true crime como Serial, podcast dos mesmos criadores de This American Life que, a cada temporada, investiga uma história criminal em suas múltiplas faces. 

Foi por isso que Branca Vianna, presidente da Novelo e apresentadora do Maria vai com as outras, ficou surpresa ao saber que Paula nunca tinha ouvido falar de Ângela Diniz, a socialite mineira que foi assassinada pelo namorado, Doca Street, em Búzios (RJ), no verão de 1976. O caso imediatamente inundou as manchetes e colunas de fofoca, mas o curioso é que o papel de vítima não foi para quem deveria ir: Doca Street foi pintado como um homem que precisou defender sua honra da “pantera” Ângela Diniz. 

“Foi uma história que me marcou muito. A forma como a reputação dela foi destruída para que conseguissem livrar o assassino da cadeia provocou uma virada no movimento feminista”, conta Branca, que tinha 14 anos quando o crime aconteceu. A mãe dela, Branca Moreira Alves, era uma importante militante feminista naquele período, em plena ditadura militar. 

Mesmo atraída por histórias de crime e interessada pelo tema do feminismo, Paula Scarpin não conhecia o caso de Ângela e seus desdobramentos, então era provável que muitas pessoas da mesma geração — nascidas na década de 1980 — e das gerações seguintes também não conhecessem. Surgiu daí a vontade de criar uma série documental para resgatar essa história e para contá-la de um jeito diferente do que ficou registrado nos jornais da época. 

Após um ano e meio de produção, o primeiro episódio do podcast Praia dos Ossos chegou às plataformas de áudio em 12 de setembro. Ao todo, serão oito capítulos lançados semanalmente, sempre ao sábados. 

True crime?

Apesar de Praia dos Ossos se basear em um crime real, suas criadoras não o enxergam como um típico podcast de true crime, como aqueles que Paula costuma acompanhar. Isso porque não há dúvidas sobre quem matou Ângela Diniz e como se deu o crime. A série procura outro tipo de resposta. 

“A gente queria entender o que esse crime fez com a sociedade brasileira e quem era essa mulher que foi morta aos 32 anos”, explica Flora Thomson-DeVeaux, que assina a pesquisa e a coordenação de produção da série. A cena do assassinato, ocorrida no lugar que dá nome ao podcast, é descrita, mas não domina a narrativa. 

Ao longo dos episódios, Ângela Diniz é lembrada com todas as suas complexidades e contradições, indo além do estereótipo da femme fatale e revelando traços de como era ser uma mulher de classe alta no Brasil dos anos 1970. Flora e Branca descobriram uma Ângela divertida, vivaz e, em vários sentidos, à frente de seu tempo, características que foram usadas contra ela por aqueles que tentaram justificar o crime.

Falar de um assassinato sem adotar um tom mórbido e, ao mesmo tempo, apontando a gravidade do caso — coisa que muitos jornais da época falharam em fazer — era o objetivo da equipe. A começar pelas entrevistas, que precisavam levar em conta a dificuldade de tocar num assunto que continua dolorido após 44 anos. 

“Tinha gente que ficava comovida ao falar da Ângela, gente que chorava durante a entrevista. E nós tentávamos conversar com essas pessoas de uma maneira que fosse atenta ao sofrimento delas, mas que, ao mesmo tempo, trouxesse as informações que a gente precisava”, revela Branca, que conduziu grande parte das mais de 50 entrevistas. 

A gente tinha sempre essa preocupação de não ofender, de prestar muita atenção na reação dos nossos entrevistados, fosse positiva ou negativa.

Branca Vianna

Diversos cuidados foram tomados para que esse processo fosse o menos invasivo possível: em vez de levar as anotações num computador, um tablet parecia mais discreto; em vez de aproveitar uma mesma tarde para resolver mais de uma pendência da produção, era melhor deixar a agenda frouxa para caso o entrevistado precisasse de mais tempo e mais assuntos amenos antes de se abrir para a entrevistadora. 

“A gente tinha sempre essa preocupação de não ofender, de prestar muita, muita atenção na reação dos nossos entrevistados, fosse positiva ou negativa, e de respeitar essas emoções”, conta Branca. “A gente não queria ter uma relação extrativista com essas pessoas”, completa Flora. 

Por outro lado, houve momentos em que a equipe precisou cutucar, ainda que delicadamente, alguns dos entrevistados na tentativa de encontrar a verdade por trás de acontecimentos e cenas com variadas versões, ou para confrontar peças incômodas desse quebra-cabeça. Durante as conversas, Branca e Flora, separadas por alguns metros, se comunicavam silenciosamente através de um documento compartilhado, aberto no tablet da entrevistadora. Se alguma inconsistência aparecia no relato, Flora rapidamente avisava Branca — digitando baixinho para não atrapalhar a captação de som —, que dava um jeito de voltar à pergunta e pedir mais explicações.

“Teve uma situação bizarra em que a gente levou um recorte de jornal e pediu que o entrevistado comentasse aquilo que ele tinha dito na época do crime. A pessoa alegou que não estava enxergando bem. Aí, quando demos um zoom no recorte, ela disse que se tratava de fake news”, lembra Branca.

O parto do roteiro

As divergências levantadas nas entrevistas só não foram mais inquietantes do que as encontradas por Flora nos jornais de décadas atrás, após horas e horas de pesquisa em hemerotecas e acervos. “Foi algo que me espantou muito, era angustiante. Na minha cabeça de pesquisadora, essas divergências eram um grande problema”, diz Flora. 

A pesquisadora conta que a solução chegou com Aurélio de Aragão e Rafael Spínola, roteiristas de cinema contratados para ajudar a dar forma a essa história tão cheia de minúcias. “Os roteiristas nos ajudaram a assumir isso, a botar na mesa vários detalhes e versões e falar: a gente não sabe a verdade, a gente não tem como saber, mas olha que interessante essa confusão”.

Aurélio e Rafael trouxeram também dois pares de ouvidos frescos e as técnicas necessárias para criar narrativas dinâmicas e interessantes a cada minuto. Sem esse olhar de fora, a tarefa de transformar dezenas de entrevistas em poucas horas de podcast parecia impossível. 

Eu estava perdida na floresta de detalhes e tudo me parecia importante. A gente acabaria com um podcast de 500 horas se não fosse pela cavalaria que apareceu para nos salvar.

Flora Thomson-Deveaux

“Tinha partes de entrevistas que a gente achava super legal, mas que não avançavam a história. Podiam ser cortadas”, confessa Branca. “Eu, como pesquisadora, estava perdida na floresta de detalhes e tudo me parecia importante. A gente acabaria com um podcast de 500 horas se não fosse pela cavalaria que apareceu para nos salvar”, acrescenta Flora. O primeiro episódio passou por mais de dez montagens — Branca diz ter parado de contar após a 12ª — antes de chegar à versão final.

Uma vez que a estrutura da série estava planejada, com os temas e cenas que iriam compor cada episódio, a equipe trombou no desafio de não deixar a fluidez do podcast ser interrompida pelas doses de juridiquês que um caso criminal exige. “São coisas chatas de escutar, ninguém quer ficar ouvindo um advogado explicando o processo”, revela Branca.

Para dar conta disso, as criadoras mergulharam nos autos do processo, conversaram com advogados e juízes e entenderam todos os detalhes para, enfim, conseguirem repassar aos ouvintes as informações necessárias de maneira descomplicada, sem quebrar o ritmo da narrativa. 

Uma das produções que serviram de inspiração para o Praia dos Ossos, principalmente no momento de costurar a história do crime com os tantos desdobramentos, camadas e personagens ligados a ela, foi o podcast estadunidense In the Dark, da APM Reports

Lançada em 2016, a primeira temporada do programa tratou do caso de uma criança sequestrada 31 anos atrás, na zona rural de Minnesota. Assim como o assassinato de Ângela Diniz, o sequestro de Jacob Wetterling e a forma como a Justiça e a sociedade lidaram com o crime revelam muito sobre o contexto do acontecimento. 

Ambos os casos, apesar de antigos, se mantêm conectados com o presente. Mais de quarenta anos após a morte da socialite mineira, o termo “crime passional” e as histórias de mulheres que “pediram para morrer” podem ter saído das manchetes, mas ainda rondam as estatísticas brasileiras da violência de gênero. 

Você pode escutar o Praia dos Ossos em qualquer aplicativo para podcast ou no site da Rádio Novelo. 


Aprendizados sobre a produção de um true crime

  1. é preciso respeitar o tempo e os limites dos entrevistados, entendendo que se trata de um assunto dolorido de relembrar;
  2. na hora da entrevista, a escolha de equipamentos mais discretos pode ajudar o entrevistado a se soltar mais;
  3. histórias podem ter múltiplas versões, e essas divergências e incertezas podem aparecer no podcast;
  4. é possível contar uma história séria sem eliminar as doses de leveza que aparecem pelo caminho — especialmente quando a personagem principal é uma pessoa divertida e vivaz;
  5. um olhar de fora pode nos ajudar a enxergar e a resolver problemas que estão empacando a produção.