Chico Felitti, colecionador de sussurros

Chico Felitti, colecionador de sussurros

Produtor de Além do Meme e Isso Está Acontecendo está sempre atento à conversa da mesa ao lado e alimenta uma planilha de histórias

Não é novidade para quem já acompanha o trabalho de Chico Felitti há algum tempo: ele é fascinado por histórias e tem um faro para encontrar personagens raros e cheios de camadas.

Autor de reportagens virais como “Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece” e dos livros Ricardo e Vânia e A Casa, sobre a seita de João de Deus, Chico já adotou os podcasts como mais um lugar para construir seus enredos. “O áudio faz cócegas em lugares do cérebro que a escrita não chega”, diz. Além do Meme, original Spotify, e Isso Está Acontecendo, do G1, estão entre suas principais produções. Em ambas, o destaque está na peculiaridade das histórias e na vontade de entender a origem de um fenômeno curioso, seja o meme da grávida de Taubaté ou a chuva de haters que se espalha pela internet.

Bati um papo com o Chico (ou um Cochicho ComChico, se me permite a piada) para entender seu processo de busca por pautas e pegar dicas para quem quer apurar esse radar de boas histórias.

Sarah: Como você faz para encontrar histórias? 

Chico: Eu acho que é meio a minha vida. A minha vida inteira é baseada em encontrar histórias, sempre foi. Desde criança eu tenho muita curiosidade, sou muito ligado em tudo o que está acontecendo ao redor. Então vou catando história por onde quer que eu passe. Qualquer trabalho que eu faça é para dar vazão a essas histórias. Eu tenho uma lista, literalmente uma planilha de histórias que eu quero contar desde que eu sou adolescente, e eu só vou colocando mais coisas. É o que eu ouço num café, é o que minha mãe me conta, é o que eu leio numa nota no jornal e imagino que pode ter mais história por trás. Eu coleciono histórias e eu tenho uma relação de zelo e de posse com elas. Até a minha relação com rede social é meio assim: conhecer gente e conhecer as histórias das pessoas, só por caça esportiva. 

  • Aos finais de semana, Chico faz campeonatos de histórias nos stories do Instagram. Acompanhe em @chicofelitti.

Chico: Eu chamo de sussurros. Eu vou colecionando sussurros e, às vezes, esses sussurros escondem uma voz mais interessante, outras vezes, não. Na verdade, 90% das vezes não dá em nada, mas tem umas que são pepitas de ouro. É tipo fusca de palhaço, que não para de sair. 

Sarah: E esses sussurros geralmente são coisas mais concretas, como “fiquei sabendo que tal pessoa fez isso”, ou são coisas que você gostaria de encontrar no mundo? Como “queria contar a história de alguém que…”

Chico: Tem projeção, e já aconteceu de projeção funcionar bem para mim. Por exemplo, o perfil do Ricardo Corrêa, que era conhecido como Fofão da Augusta, foi uma coisa meio de projeção. Eu via ele na rua e por 13 anos eu quis entrevistá-lo. Eu sabia que ia ter uma história incrível ali. Não foi que eu tropecei e caí na oportunidade de contar essa história, não. Teve um esforço de anos. Mas acho que tende a funcionar melhor quando é um fiozinho de novelo que você pode puxar. Por exemplo, uma vez eu estava tomando um café num SESC, aqui em São Paulo, e aí, na mesa do lado, duas pessoas estavam conversando. E elas falaram: “você não vai acreditar, esse velho me contratou para construir uma galé para colocar quadros e fazer um museu flutuante na represa de Guarapiranga”. Juro, eu bati na mesa e falei: “desculpa, eu não te conheço, mas você vai ter que me contar quem é essa pessoa, senão eu não vou conseguir viver, meu coração vai parar e eu vou morrer”. Eles me contaram quem é e falaram assim “não me bota no meio, não fala que fui eu”.

Eu fui atrás. Esse sujeito existia, era um herdeiro de muitas terras ao redor da represa de Guarapiranga. Era já um homem de idade, e ele tinha mandado trazer do Japão uma impressora do tamanho da minha sala que reproduzia pinturas, imprimia em tela mesmo. Ele tinha em casa dezenas de milhares de reproduções das telas mais famosas do mundo, como Guernica, tudo jogado numa mansão abandonada na beira da represa de Guarapiranga. E ele queria fazer um museu flutuante de réplicas. Entende o nível da loucura? E ele tinha uma queda pelo nazismo. Então era uma figura inacreditável. Rendeu uma reportagem que saiu na capa da Ilustrada [caderno de cultura da Folha de S.Paulo], mas eu sei que renderia muito mais. E eu encontrei a história por acaso. 

Você sabe o que é extraordinário quando você está na frente do extraordinário.

Chico Felitti
Sarah: Tem bastante construção de personagem nas coisas que você faz. No que você presta atenção? Você anota as coisas que vai vendo, fala no gravador?

Chico: Eu anoto tudo o tempo inteiro, porque não confio na minha memória. Eu tiro muita foto, de tudo. Fotografo a casa da pessoa, o carpete. Na hora de escrever, eu fico olhando o meu álbum de fotos do celular.

Sarah: E você acaba sendo também um personagem nas histórias.

Chico: Sim, porque de fato tem muita história que começa em casa. Muita coisa parte da gente, e acho tudo bem que parta. Sei lá, descobri que meu marido estava trocando mensagens e nutrindo uma amizade há meses com a Vanderleia, uma testemunha de Jeová que ligou pra ele um dia de manhã para ler um salmo. Daí eu fui descobrir que as Testemunhas de Jeová tinham migrado para o WhatsApp e estavam fazendo ligações randômicas. Eles pegavam todas as combinações possíveis de telefone e ligavam. Então ela começa 99999-9999, depois 99999-9998. E esse é o trabalho da Vanderleia quatro horas por dia. Se isso não é interessante, eu não sei o que é. Eu conheci um cara que perdeu a esposa por covid-19 e tinha acabado de ficar viúvo que também encontrou muito conforto e ficou amigo de uma testemunha de Jeová, e o cara não é da religião. Tinha boas histórias, no fim. Acho que o jornalista é muito treinado a ter preconceito com as histórias que vêm de casa, algo que o documentarista já não tem.

Sarah: O podcast narrativo se aproxima muito do documentarismo, né? O repórter como o personagem, a trajetória até chegar na história, os bastidores…

Chico: É a história completa, né? Porque, se você parar para pensar, o que sai nos jornais e nos canais de televisão mainstream é uma versão muito editada e um corte muito preciso da informação. Eles não mostram a cozinha deles, enquanto, no podcast, a nossa cozinha tem parede de vidro, é mostrada o tempo inteiro.

Sarah: Acho que isso traz muitas particularidades para o áudio, por exemplo, quando precisamos confrontar alguém durante a entrevista. No impresso, às vezes o repórter pode se dar ao luxo de fazer uma pergunta meio enrolada, não tão direto ao ponto, e ninguém vai saber. No áudio, não. 

Chico: O áudio é sincero. 

Sarah: O confronto tem que acontecer ao vivaço.

Chico: Você precisa pegar o confronto, senão ele não vale de nada. E é ouro, né? Eu não tenho problema nenhum com o confronto, pelo contrário, me dá vontade de pensar na situação e de correr atrás da pessoa se ela sair correndo. Não sei, acho que eu entro em um modo que já não sou mais eu, sabe? Parece que eu estou me vendo de fora.

Sarah: Dá uma dissociada?

Chico: Dá uma dissociada total. Já me peguei nessa situação algumas vezes. Uma vez um senador gritou comigo e…nessas horas eu viro outra pessoa. É como se eu estivesse jogando The Sims. Eu entro na onda cem por cento, qualquer que seja ela. Eu choro junto com a pessoa que está chorando, mas, ao mesmo tempo, eu sou ótimo de conflito.

Sarah: Quais são as suas referências? 

Chico: Cara, eu sou uma pessoa muito da TV aberta. Eu amo, e é uma das minhas grandes fontes. Eu estou falando de Globo, de SBT, de Goulart de Andrade. Acho incrível o “Vem comigo”, enfim, todos os programas que ele teve. Acho revolucionário pensando em quando foi feito. Mas também sou da leitura, dos livros-reportagem. Eu me inspiro muito na Daniela Arbex, quero um dia fazer alguma coisa que seja um milésimo do que ela faz, na Svetlana Aleksiévitch… Essas pessoas que são nossos olhos terceirizados.

Sarah: Você tem alguma dica para quem não está tão habituado a procurar essas histórias? Tem algum elemento específico para o qual a pessoa deve se atentar? 

Chico: Eu acho que o insólito. É indefinível, mas dá para sentir. A gente sabe o que é o insólito quando se depara com ele. Você sabe o que é extraordinário quando você está na frente do extraordinário. Você pode não saber o que torna aquilo extraordinário, mas vai te chamar a atenção. E, se chamar a sua atenção, pode chamar a de outras pessoas. Se eu quis olhar de novo para aquela pessoa ou quis ouvir de novo aquela história ou se ela me fez virar a cabeça, vai fazer outras pessoas virarem a cabeça. Enfim, o incomum pode se manifestar de tantos jeitos, pode ser tanta coisa, que não tem muito como colocar regra. Acho que é uma coisa que é pouco ensinada na reportagem e no jornalismo, um instinto. Quando você ouve alguém falando de uma galé para fazer um museu flutuante na represa de Guarapiranga e seu sentido aranha tilita, você vai atrás.