História Preta: personagens que dão vida ao passado

História Preta: personagens que dão vida ao passado

Thiago André, que produz o podcast de ponta a ponta, revela estratégias de pesquisa documental e escrita de roteiros

Muçulmanos negros no Brasil, a influência africana no português brasileiro, a origem do blues. Esses são alguns dos assuntos que já passaram pelo História Preta, um podcast documental que coloca em foco os personagens e acontecimentos que marcaram a história da população negra no Brasil e no mundo.

Produzido e apresentado por Thiago André, historiador em formação, o programa traz entrevistas com pesquisadores, artistas e comunicadores e mergulha em fatos e curiosidades para revelar histórias que foram esquecidas, pouco contadas ou embranquecidas.

Em conversa com o Cochicho, o Thiago contou um pouco mais sobre o processo de pesquisa e de produção do História Preta — que ele faz sozinho, de ponta a ponta, em seu tempo livre.

Cochicho: O que te encorajou a começar o História Preta e como tem sido esse percurso?

Thiago André: Eu sou nascido em Nova Iguaçu (RJ) e, em 2012, me mudei para a cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, por motivos de trabalho. Essa mudança foi muito importante para eu me reencontrar com a minha negritude — falo sobre isso no primeiro episódio do História Preta. No Rio Grande do Sul, eu me percebi um sujeito negro por conta da divisão social e racial muito evidente. Me deparei com uma militância negra muito combativa e descobri a história dos meus ancestrais por meio da academia e da vivência com outros estudantes negros.

Eu fazia graduação em História na Universidade Federal de Pelotas quando, de repente, fui transferido de sede no meu trabalho. Isso implicava em mudar de cidade e, consequentemente, trancar meu curso. Pessoas na mesmo situação que a minha puderam solicitar transferência de matrícula para uma outra universidade federal na cidade de destino, o problema é que na minha cidade de destino não tinha Licenciatura em História nas universidades públicas.

Eu me senti sem rumo, muito frustrado. Foi como se me tirassem tudo isso. Foi aí que resolvi criar o História Preta, porque através do podcast eu poderia continuar pesquisando sobre a história negra, poderia falar sobre isso com outras pessoas negras e me manter conectado com a nossa comunidade.

Cochicho: Como você se organiza para fazer a pesquisa documental dos episódios? 

Thiago André: Primeiro, eu identifico um “problema” a ser abordado. Isso pode vir de um interesse pessoal pelo assunto, como foi o episódio que fiz sobre a Influência Negra no Português do Brasil, ou por sugestão da audiência, como foi o episódio Do Funk ao Funk Carioca.

O próximo passo é reunir toda a bibliografia que eu puder sobre o tema. E eu começo pelos livros considerados indispensáveis, ainda que sejam questionáveis. Por exemplo, para falar sobre o negro no futebol, é indispensável ler O Negro no Futebol do Brasil, do Mário Filho. Esse foi o primeiro livro publicado sobre o tema e, seja para concordar ou discordar, quase todo pesquisador da história social do futebol vai “pagar um pedágio” na obra de Mário Filho. Ou seja, para entender bem os outros estudos com os quais vou me deparar ao longo da pesquisa, preciso saber minimamente sobre os fundamentos desse tema escolhido. 

Outro ponto é que eu procuro preferencialmente livros digitais, porque isso me ajuda a ganhar tempo. Só que nem sempre temos livros publicados sobre aquele tema, isso acontece muito no campo da história. Por mil questões do mercado editorial, nem tudo o que é produzido em termos de pesquisa acadêmica será publicado em livro. E, no caso da história da população negra, isso é mais comum do que gostaríamos.

Além disso, muitas pesquisas e descobertas históricas são tão recentes que ainda não tiveram tempo de ganhar as prateleiras das livrarias e nem as salas de aula. No episódio Onde estão as Pretas?, da série de episódios O negro no futebol, lanço mão de uma descoberta histórica que tem menos de um ano de vida. 

As pessoas se envolvem mais com histórias pessoais. Pessoas em dilemas, conflitos, provações, são muito mais interessantes que um punhado de datas e acontecimentos aleatórios.

Thiago André

Para conseguir informações frescas, eu uso o Google Acadêmico, que funciona como o Google normal, mas quando você pesquisa algo como Samba de Roda, ele te devolve resultados de bases acadêmicas. Ou seja, ele te apresenta artigos, dissertações de mestrado, teses de doutorado e publicações científicas sobre o assunto. No Google normal, provavelmente apareceriam muitos vídeos e sugestões de música sobre o tema. Dá para dizer que o Google Acadêmico tem sido a minha principal ferramenta de pesquisa na construção dos roteiros do História Preta. 

Cochicho: Qual o processo mais fundamental para a produção dos episódios? 

Thiago André: No caso do História Preta, a pesquisa é o fundamento. Não tem nada mais importante do que o conteúdo que preciso transmitir. Nesse sentido, o meu papel é deixar as pesquisas acadêmicas mais atraentes para o ouvinte. E isso começa na escrita do roteiro. Eu busco ser didático o suficiente para que todos entendam com clareza a história do dia. Tenho dois ouvintes que me ajudam nisso: meu tio Paulo, que é muito habituado com o debate racial na academia; e a minha sogra, Valéria, que é pouco familiarizada com o linguajar acadêmico e pouco sabe sobre os debates raciais. Pensar em cada um deles me ajuda bastante na construção de um roteiro mais acolhedor.

Cochicho: Tem alguma estratégia especial que você usa para construir cada roteiro? 

Thiago André: Busco sempre pelo menos um personagem para ser o fio condutor de uma história ou tema mais amplo. As pessoas se envolvem mais com histórias pessoais. Pessoas em dilemas, conflitos, provações, são muito mais interessantes que um punhado de datas e acontecimentos aleatórios.

Um exemplo: eu queria falar sobre a história social do Blues, mas falar sobre isso apenas com grandes acontecimentos e datas históricas é pouco atrativo. Então, chamei Robert Johnson para ser o fio condutor da minha história. Ele era um sujeito de pouco talento musical que ganhou habilidades inimagináveis com o violão após um suposto pacto com o Diabo numa encruzilhada. Viu? Aposto que você quer saber um pouco mais sobre ele! Eu usei a história de vida desse sujeito para falar sobre a vida dos negros no Sul dos Estado Unidos, religiosidade, trabalhos forçados e várias outras coisas interessantes que ficariam bem menos atrativas se não fosse Robert Johnson e seu pacto na encruzilhada.

Cochicho: o História Preta, além de ser uma referência de produção, carrega um papel social. Como é estar à frente de um processo de resgate histórico tão fundamental?

Thiago André: Eu não sinto que estou a frente desse processo. O História Preta é apenas um pequeno pedaço de algo muito maior. Essa busca pelo conhecimento da nossa trajetória enquanto sujeitos negros vivendo em diáspora se dá em muitas frentes: nos movimentos sociais, nas pesquisas acadêmicas, nas salas de aula. Sem esses espaços, nem sei se seria possível a existência de um conteúdo como o meu.

A meta é que você entre em qualquer canal de comunicação e encontre um preto falando sobre negritude com excelência, mas com tanta excelência, que vai ser impossível ser ignorado.

Thiago André

Fazer um podcast narrativo tendo a história negra como centro é uma maneira de ocupar um espaço majoritariamente embranquecido. Fizemos isso no Youtube, no Instagram, no Medium, no Twitter, nos livros e, agora, também no podcast. A meta é que você entre em qualquer canal de comunicação e encontre um preto falando sobre negritude com excelência, mas com tanta excelência, que vai ser impossível ser ignorado.


Aprendizados sobre a produção de um podcast documental:

  1. É importante ler as principais obras sobre o tema que você vai tratar, mesmo que sejam obras questionáveis das quais você discorde;
  2. O Google Acadêmico pode ser um ótimo aliado na hora de buscar informações frescas e confiáveis;
  3. Histórias pessoais tornam acontecimentos e processos históricos mais atraentes;
  4. Aproveite ouvintes ao seu redor para checar se as histórias estão interessantes e fáceis de entender.

Escute o História Preta em qualquer aplicativo para podcast.