Sobre perguntar e ouvir
[…] o Faxina me nutre de aprendizagens. Aprender a pedir. Aprender a esperar pelo outro, pelo tempo, pela forma, pela história. Aprender a confiar em mim, no outro, na força de uma estética que tem berço na honestidade e na gentileza.
Heloiza Barbosa
Heloiza Barbosa escreveu o trecho acima em seu diário em janeiro de 2020, poucos meses antes de lançar o Faxina, um podcast que conta histórias de faxineiros e faxineiras brasileiros vivendo nos Estados Unidos. A Heloiza, que nasceu em Belém e hoje vive em Boston, é doutora em Educação e foi professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Antes disso, quando se mudou para os EUA na década de 1990, também trabalhou como faxineira.
Cada episódio do Faxina se concentra em um personagem. As histórias falam da dificuldade de mudar de país — incluindo travessias perigosas com a ajuda de coiotes —, de aprender na marra uma nova cultura e uma nova língua, de pertencimento e saudade, de pedaços dolorosos do passado que foram deixados no Brasil.
No podcast, raramente escutamos as perguntas feitas pela Heloiza ao entrevistado. Ouvimos apenas os relatos do personagem costurados à narração dela, às músicas e paisagens sonoras. Mas o nível de detalhe e a profundidade dos depoimentos nos fazem pensar no tanto de trabalho envolvido na coleta das histórias, no momento de sentar frente a frente com faxineiros e faxineiras para gravar as entrevistas.
Prestes a lançar a segunda temporada do Faxina (começa em 24 de fevereiro), a Heloiza conversou com o Cochicho sobre a arte de fazer perguntas e esperar pacientemente pelas respostas.
Cochicho: Antes do Faxina, você já tinha entrevistado alguém?
Heloiza Barbosa: Entrevistado, não. Mas quando eu me peguei nesse papel de produzir o Faxina, eu me surpreendi com o quão confortável eu me senti. Pareceu muito que eu já tinha feito isso antes. Depois, pensando sobre o motivo de eu estar tão confortável naquele momento, eu fui perceber que todo o treino acadêmico que eu tive e o que eu fazia como pesquisadora era um pouco isso de tentar documentar os processos.
Eu trabalhava com crianças e a minha pesquisa era sobre desenvolvimento cognitivo, e eu sou daquela geração que estudava Piaget, estudava os processos de como a criança chega a determinadas coisas. Quando eu fiz o meu doutorado, eu lembro que na universidade tinha uma pré-escola. E eu fui para lá para observar. Então eu levei uns seis meses olhando as crianças para depois pensar nas tarefas que eu ia fazer para coletar os dados para a minha dissertação de doutorado.
Depois, quando eu voltei para o Brasil, fui para a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde trabalhei com crianças surdas. Eu montei um laboratório lá e foi uma coisa muito engraçada, porque o povo da universidade falava que eu era pesquisadora americana fazendo Big Brother. Eu não sabia o que era Big Brother. Depois me falaram que era um programa e aí eu fui entender a brincadeira, porque eu queria chamar as crianças para brincar com objetos soltos enquanto ficava uma câmera gravando, para poder ver como é que elas faziam isso. Todo o meu trabalho como pesquisadora foi muito isso de ficar coletando essas nuances, coletando essas coisas que meio que passam despercebidas, mas que, para mim, é nelas onde está a história. Quando eu percebo que tem alguma coisa ali, é ali que eu vou. Por curiosidade, absoluta curiosidade.
Quando comecei a fazer as entrevistas para o Faxina, imediatamente me vi naquele papel de novo. Depois, num workshop sobre entrevistas que fiz na Podcast Garage, fiquei sabendo que é legal você fazer uma pergunta e deixar o silêncio desconfortável para que a pessoa preencha. Eu já fazia isso mesmo sem saber, porque eu ficava tão entretida no movimento do corpo da pessoa e no que ela estava fazendo, que quando ela acabava de falar eu ficava quieta, mas não era proposital. Se ela me falava que tinha nascido em algum local, eu ficava tentando imaginar aquele lugar, e ficava o silêncio.
Cochicho: Teve algum processo ou técnica de entrevista que você não sabia como fazer e teve que aprender para produzir o Faxina?
Heloiza Barbosa: Quando eu pensei no formato do Faxina, eu achava que iria conseguir gravar as entrevistas com as faxineiras dentro do carro, no trajeto delas de uma casa para outra. Mas não consegui, porque ninguém fala coisas pessoais para você quando tem três outras pessoas no carro. Não rola. Então eu aprendi que precisa ter esse espaço íntimo, do entrevistador com o entrevistado.
Mas eu acho que eu ainda não sei muito bem como fazer perguntas, as perguntas mais elaboradas. Nesse mesmo workshop de entrevistas da Podcast Garage, eu aprendi que é legal fazer duas perguntas juntas, de uma vez só, mas eu ainda não sei fazer isso. Quando eu estou na entrevista, fico tão envolvida com aquela pessoa que essas coisas passam pela minha cabeça, “ah eu deveria fazer isso”, mas eu não sei como fazer. E aí eu deixo pra lá, acabo indo mais no natural, na intuição.
Cochicho: Você faz um roteiro de perguntas para a entrevista ou vai apenas com os tópicos na cabeça?
Heloiza Barbosa: Eu anoto tudo. No papel, eu tenho as coisas que eu quero perguntar e também anotações que vou fazendo durante a entrevista para lembrar ou retomar depois.
Uma das coisas que eu faço na primeira entrevista com a pessoa é usar o guia de perguntas do StoryCorps, um programa da rádio pública de Chicago. São perguntas abertas, boas para quando você ainda não sabe em que direção a pessoa vai te levar.
Cochicho: O Faxina conta muitas histórias delicadas, com partes doloridas. Como você faz para deixar os entrevistados confortáveis e para conseguir acessar essas histórias?
Heloiza Barbosa: Tem uma coisa que eu faço desde a primeira temporada, que é falar para as pessoas: olha, não vai ser uma entrevista. Eu quero saber de você, quero saber o que te trouxe até aqui, e eu não posso saber disso em uma só entrevista. Geralmente, para um episódio, a gente faz três entrevistas, quatro entrevistas com aquela pessoa. Agora o primeiro contato ficou até mais fácil, porque eu posso usar como referência a primeira temporada para mostrar para a pessoa como é o Faxina.
Eu sempre marco uma primeira conversa de 30 minutos. Já é uma entrevista, mas indo devagar, porque a gente está se conhecendo. Geralmente ela está super tensa e pensa assim: “vou falar as coisas que eu já preparei na minha cabeça”, e fala. Eu explico mais ou menos como é a dinâmica, a gente fala das coisas mais leves, de como é a vida, dos perrengues normais de imigrante. A minha intenção é perceber aonde essa pessoa quer me levar. E eu também divido coisas da minha vida, porque eu acho que é justo, já que a gente está compartilhando coisas.
Aí eu marco a segunda entrevista e, para me preparar, escuto a primeira para ver que temas existem ali, que assuntos a pessoa meio que pinçou e deixou passar. Por exemplo, em um dos episódios da segunda temporada, a entrevistada me contou que, quando criança, gostava muito de jogar videogame, mas que nunca gostou de brincar de boneca. Mas aí ela já foi falando outras coisas e o assunto passou. Depois, ouvindo aquilo, eu pensei “hum, não gostava de brincar de boneca, por que será?”, e anotei para a próxima entrevista. Essa anotação me rendeu basicamente o episódio todo que vai ao ar.
Na segunda entrevista, a pessoa costuma já chegar mais relaxada, sem nada preparado. Do outro lado, eu já vou mais preparada para ir direcionando melhor. Eu digo: “você falou de uma casa, me leva para esse lugar, como era?”. Já na terceira entrevista eu tento ir atrás daquela coisa que eu senti que é a mais difícil de falar.
Cochicho: Você sempre pede esses detalhes, esses cenários?
Heloiza Barbosa: Sempre, sempre. Porque eu acho que tem uma coisa de conexão com a memória. A memória dos sentidos, dos sensos. Eu pergunto como era o cheiro, qual era a cor que tinha ali. Uma outra personagem que vai estar nesta segunda temporada fala de um orfanato em que ela viveu, e eu queria construir aquela cena de orfanato. Eu perguntei para ela qual era o barulho do orfanato. “Você ouvia as pessoas andando, pisando? Esse chão era de cimento, era de madeira, como era?”. Eu acho que quando você pergunta isso com a intenção de criar a cena auditiva, a atmosfera para o podcast, isso também leva a pessoa de volta ao local e, com essa lembrança, mais detalhes da história vêm junto.
Cochicho: Alguma vez você sentiu que estava no limite de até onde aquela entrevista poderia ir? Ou já deixou de fazer uma pergunta porque sentiu que não seria legal ir além daquelas camadas?
Heloiza Barbosa: Sim. O terceiro episódio da primeira temporada, “Entre quatro paredes”, é a história da personagem Elza. Na primeira entrevista, ela falou do relacionamento abusivo que ela tinha vivido e ela falava de um filho, “meu filho pequeno”, que agora já tem 17 anos. Mas aí ela disse que agora tinha um casamento maravilhoso nos Estados Unidos, que a vida estava legal e tal. Deixei ela mudar de assunto e só anotei aquilo, porque sabia que ela não queria falar daquela história na primeira entrevista.
Na segunda entrevista, eu retomei o assunto. Aí ela me contou da relação abusiva, mas de uma forma mais geral, sem detalhes. E falou assim: “eu nunca contei essa história para o meu filho”. Naquele momento eu fiquei num conflito ético gigante. Lógico que as pessoas dão consentimento, mas eu precisava relembrá-la que essa história estaria no podcast, que seria ouvida. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha medo que ela desistisse da história inteira. Eu deixei ela falar e a gente terminou a entrevista.
Na terceira entrevista, eu já cheguei falando abertamente com ela e perguntei se ela queria continuar. Ela falou: “eu quero, porque eu acho que é o caminho para eu ter a conversa que eu nunca tive com ele”. Foi aí que ela abriu a história e contou tudo.
Cochicho: Durante as entrevistas, como você se comporta quando a história passa pelos momentos mais delicados?
Heloiza Barbosa: Ah, eu choro. Eu choro junto. O meu coração palpita, acelera, porque não tem como. Se a pessoa me conta uma coisa que é universalmente humana de dor, eu vou sentir essa dor. Mas também fico feliz quando é uma coisa feliz.
Eu saio exausta das entrevistas, principalmente quando a gente conseguia fazer pessoalmente. Saio exaurida de energia, sugada pelo esforço de estar presente, de estar inteira, e pelo esforço de estar junto nessa conexão de empatia com o outro.
Uma preocupação que eu tenho é que, se a pessoa fala de uma experiência muito dolorosa, eu não vou terminar a entrevista naquele tom. Eu não vou falar para a pessoa: “muito obrigada, vá para casa agora com essa dor”. Não. Quando era pessoalmente, eu sempre alongava para um café, ou mudava de assunto. Porque é uma responsabilidade gigante com o emocional da pessoa que está ali com você.
Cochicho: Antes todas as entrevistas eram feitas pessoalmente. Como está sendo gravar durante a pandemia?
Heloiza Barbosa: A gente esta fazendo pelo Zoom. Eu peço para as pessoas reservarem um local silencioso, de preferência quando estiverem em casa sem ninguém por perto. Às vezes a qualidade do áudio não é tão boa, porque a gente está falando de imigrantes que só têm o celular, não têm computador em casa. Não tem como eles gravarem um backup no gravador do celular, por exemplo.
Na primeira temporada a gente tinha o som de tudo, porque a gente captava, a gente saia com as pessoas, ia para as faxinas, ia nas casas, captava o som. Nesta segunda temporada a gente está meio que criando esses sons das cenas a partir de informações que as pessoas nos dão.
Cochicho: Em termos de tirar as melhores histórias dali, você sente muita diferença da conversa presencial para a remota?
Heloiza Barbosa: Muita. Fica um distanciamento. Acho que o fato de você não estar ali perto, de não ter esse corpo, essa linguagem corporal presente quando alguém está falando, é diferente. E dá mais trabalho para as pessoas se abrirem.