Para ler antes de apertar o rec: conselhos de um advogado para evitar problemas com fontes e direitos autorais

Para ler antes de apertar o rec: conselhos de um advogado para evitar problemas com fontes e direitos autorais

Guilherme Lucchesi, consultor jurídico do podcast Projeto Humanos, fala sobre termo de autorização do uso de voz, reprodução de músicas, créditos e mais

Em qualquer tipo de podcast, mas especialmente nos investigativos, os cuidados éticos e jurídicos têm que estar no topo de lista de preocupações. Garantir que os entrevistados saibam onde estão se metendo e verificar os direitos autorais de materiais retirados da internet são passos importantes para construir a transparência do programa e para evitar dores de cabeça (ou até o famoso processinho).

Conversamos com o advogado Guilherme Lucchesi, que atua como consultor jurídico do podcast Projeto Humanos, para tirar dúvidas que rondam todos nós.

Em podcasts investigativos costumamos ouvir o repórter ligando para uma fonte sem aviso prévio para perguntar sobre determinado assunto. Nesses casos, qual o procedimento correto para evitar problemas? 

Essa questão de gravação é bem interessante. Na Justiça, como prova, a gente admite que conversas gravadas por um dos interlocutores – quer dizer, se eu ligo para alguém e gravo –, têm validade judicial. Não é considerada uma gravação ilícita, por exemplo. Agora, se o objetivo é a divulgação num podcast ou em algum outro tipo de material jornalístico, o interlocutor que foi gravado sem consentimento, e muitas vezes até sem ciência de que estava sendo gravado, depois vai poder alegar que houve violação a um direito de personalidade dele, seja uso indevido de voz, ou uso indevido de imagem, se for, por exemplo, uma gravação em vídeo clandestina. Então, a minha recomendação para evitar esse tipo de questionamento e evitar problemas é seguir da maneira mais caxias possível, mais by the book, e fazer todas as declarações de consentimento, em vez de ficar querendo fazer uma emboscada com a fonte.

Se eu abordar a fonte pessoalmente, aparecendo de surpresa na casa dela, por exemplo, os cuidados são os mesmos?

Sim. Para mim, o ideal é você pegar o gravador e avisar que vai apertar o rec, ou até mostrar para a pessoa que você está apertando o rec. Eu penso que o trabalho jornalístico é mais nobre quando segue essas formalidades.

Se eu gravar a conversa sem avisar e depois usar no podcast, o que pode acontecer?

O interlocutor pode entrar com pedido de retirada, pode entrar com um pedido de reparação de danos… E a gente tem que pensar o seguinte, o podcast é um conteúdo jornalístico e, quanto mais a gente profissionaliza, fato é que existe um uso comercial sendo feito pelo jornalista ou pelo responsável, nem que seja por financiamento coletivo, veiculação de publicidade, ou até pela venda de direitos, como aconteceu no Projeto Humanos, que agora está na Rede Globo. A jurisprudência é muito restritiva e rigorosa com o uso comercial da imagem e da voz. Todos esses cuidados costumam ser tomados por jornalistas que vão fazer um trabalho investigativo para a grande imprensa. O gravador só é ligado quando a pessoa combina falar em on, quando é em off, o gravador é desligado, e assim por diante.

E quando uma fonte envia ao produtor do podcast áudios de terceiros, por exemplo, áudios de WhatsApp que têm a ver com o tema da investigação. Isso pode ser usado no programa?

Em tese, esse áudio não poderia ter sido compartilhado porque vem de uma comunicação privada entre duas ou mais pessoas, ou de um grupo de WhatsApp. Mas, a partir do momento que um dos interlocutores dessa conversa envia ao jornalista esse material e ele publica, a jurisprudência entende que não há ilegalidade nisso. Então, eu diria que, sim, dá para fazer, mas eu recomendaria que fosse feito um filtro para entender se há valor jornalístico e informativo naquele material ou se ele está sendo reproduzido apenas para chocar a audiência de modo sensacionalista. Em tese, há uma violação de personalidade, porque é a voz da pessoa numa mensagem que pode estar sendo tirada de contexto. Pode ser que haja um questionamento, então é importante avaliar se vale a pena. 

No caso de veículos menores ou podcasts independentes que não têm um setor jurídico para auxiliá-los, imagino que o cuidado deva ser maior. Certo?

Eu diria que sim. Às vezes não há um corpo jurídico ou não se quer gastar com orientação jurídica. Nesse caso, tem que pensar o seguinte: qual é o meu grau de exposição, qual vai ser o meu eventual retorno, e o quanto eu vou me incomodar com isso. Quanto menos você quiser se incomodar, quanto menos você quiser gastar numa situação como essa, mais rigoroso tem que ser o seu filtro.

Sobre o termo de autorização do uso de voz (ou de voz e imagem, caso gravação seja feita em vídeo também), que repórteres costumam levar nas entrevistas e pedir que os entrevistados assinem. Quão recomendado é esse procedimento? 

Eu diria que é bastante recomendado, justamente para evitar que haja depois um questionamento por parte da fonte. Não é incomum a pessoa dar uma entrevista super feliz, mas aí, dá 15 minutos, o programa tem uma repercussão negativa, a pessoa desiste de aparecer e volta atrás. O documento acaba sendo uma proteção para o próprio jornalista contra esse tipo de mudança súbita. 

Consentimento pressupõe informação. Não existe consentimento se a pessoa não souber exatamente o que ela está consentindo.

Guilherme Lucchesi, advogado

Dica: na internet há modelos de termos, mas o ideal é procurar um aconselhamento jurídico, principalmente para garantir que o documento cubra as necessidades específicas da sua produção. 

Tem que ser por escrito ou eu posso, por exemplo, pegar a autorização em áudio, antes de começar a entrevista? 

Se você tomar o cuidado de, no começo de uma entrevista, ligar o gravador e dizer: aqui quem fala é fulano de tal e eu estou entrevistando ciclano para o podcast tal. Aí pede para a pessoa dizer o nome completo, pergunta se ela concorda com a gravação, ela diz que concorda e pronto.  Está resolvido. O importante mesmo é garantir a anuência, registrar o consentimento. Penso que isso basta.

Tendo esse consentimento, seja por escrito ou no áudio, caso o entrevistado se arrependa depois, ele não pode fazer nada a respeito?

Ele até pode fazer algo a respeito, mas o jornalista vai ter uma prova de que não fez nada de errado. Por isso eu acredito que quanto mais específico for o termo ou o consentimento em áudio, melhor. É legal até dizer qual é o assunto, qual o uso pretendido. Porque não adianta você dizer que vai gravar um podcast sobre X e aí depois você pega aquele trecho da conversa e usa de outra forma, ou incrimina o sujeito. Acho que essa transparência é muito importante, porque o consentimento pressupõe informação. Não existe consentimento se a pessoa não souber exatamente o que ela está consentindo.

Dica do Cochicho: na verdade, essa é uma dica que aprendemos com produtores de alguns dos nossos podcasts favoritos. Se o entrevistado disser algo que você, como jornalista/produtor que estudou o tema, queira contestar, é mais honesto você se pronunciar imediatamente, na própria entrevista, do que deixar para fazer isso no roteiro e na montagem do episódio. Assim, você não só dá à pessoa o direito de responder à contestação, mas também abre espaço para um momento de great tape (ou, na nossa tradução, áudio dourado), os diálogos e cenas mais interessantes de se ouvir. 

Para usar áudios retirados de vídeos que estão na internet, é preciso algum tipo de autorização? 

O que é público tem uso livre, digamos assim. Tudo o que está divulgado na TV, no rádio, online ou que foi reproduzido no YouTube, se o objetivo é rechear uma história e usar esse material como fonte de informação, a reprodução parcial ou até integral, dependendo do uso que for feito, é válida. A própria Lei de Direitos Autorais [Lei 9610, de 1998] diz que não constitui ofensa aos Direitos Autorais a citação ou utilização do material. A lei é mais antiga, não se pensava em YouTube, mas vale para aquilo que é dito ou publicizado, de acesso livre, nas redes. Se a pessoa grava um vídeo para o YouTube falando um monte de coisa, depois tudo aquilo pode ser utilizado num podcast, sem configurar violação de direito autoral e nem ao direito de imagem ou da personalidade relacionada à voz do sujeito. Afinal, foi ele próprio quem deu divulgação. A única coisa que não pode é você fazer essa nova divulgação com o objetivo de meramente reproduzir o material, como se ele fosse da sua autoria. Isso, sim, configuraria uma violação de direitos autorais. 

Preciso dar crédito para cada trecho usado?   

O crédito é sempre bem-vindo e vai reduzir qualquer espécie de questionamento. Então, colocar “isso foi retirado da matéria jornalística tal, publicada pelo veículo tal em tal data” é o ideal. Não precisa fazer isso na própria gravação, no próprio podcast. Poderia ser uma listinha de fontes na descrição do episódio, ou mesmo no site do programa. Para além da questão jurídica, é um ato de gentileza com quem produziu o material, e não custa. Dependendo de como você organiza essas referências, fica legal até para o ouvinte. Como, por exemplo, a enciclopédia do Caso Evandro [quarta temporada do podcast Projeto Humanos], que é super completa. 

Sobre o uso de músicas e trechos de filmes. Hoje a gente sabe que plataformas como o YouTube e o Spotify ficam de olho para notar se, por exemplo, alguém está reproduzindo sem autorização uma música que está sob os direitos de uma gravadora. Mas, se eu quiser usar um trechinho que tem a ver com a história que eu estou contando, isso é permitido pela Lei de Direitos Autorais? Há no Brasil algo parecido com o fair use dos Estados Unidos?

Nos Estados Unidos é bem diferente, porque o fair use é um princípio que vai ser analisado caso a caso. Aqui no Brasil, a gente tem o artigo 46 da Lei de Direitos Autorais, que tem um ponto que diz assim: […] não constitui ofensa aos Direitos Autorais a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza […] sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova”, o que acho que no podcast não seria o caso, “e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”. Então, eu diria que isso não permite que alguém saia usando como música-tema do seu podcast, sem autorização, uma obra composta por alguém. Mas, por exemplo, se você está contando uma história específica que acontece num show de determinado artista e você quer tocar um pequeno trecho da música desse artista para ilustrar a história, pode ser legítimo. O ideal é que isso seja feito de maneira comedida e sempre relacionada ao conteúdo informativo do podcast.

Dá para ter ideia de qual seria uma duração aceitável?

Só fala “pequeno trecho”. Eu não sei esse pequeno trecho são cinco ou se são dez segundos, porque o Direito Brasileiro não chega a esse ponto de definição. No caso de trechos de filmes, eu vejo menos problema, porque você vai usar só o som, não tem a imagem. Esse tipo de sampling dá para fazer, desde que não seja algo excessivo.

Mais alguma dica para quem está planejando a produção de um podcast?

Principalmente no caso do jornalismo investigativo, acho interessante criar um canal, como um e-mail, para onde as pessoas possam direcionar reclamações e pedidos de direito de resposta, até para evitar que essas reclamações sejam feitas diretamente nas redes sociais.