Experiências da Carol Pires na construção de cenas

Experiências da Carol Pires na construção de cenas

Apresentadora do Retrato Narrado, co-roteirista do Democracia em Vertigem e ex-repórter da piauí mostra relações entre podcast, cinema e texto

Levar o ouvinte para dentro da história é quase um mantra entre os produtores de podcasts narrativos. E as cenas ajudam muito a cumprir essa tarefa. São elas que fazem o público se imaginar em determinados ambientes ou situações. Construir cenas envolventes, contudo, exige uma boa dose de criatividade, pesquisa intensa, conhecimento sobre o tema e disposição para gastar a sola do sapato (quando a covid-19 deixar).

Quem ouviu o podcast Retrato Narrado certamente encontrou um pouco de tudo isso ao embarcar com a Carol Pires rumo a destinos que fazem parte da vida do presidente Jair Bolsonaro, o personagem central da primeira temporada desta série documental do Spotify e da revista piauí, com produção da Rádio Novelo.

Ela e o Gustavo Zysman, técnico de som da produção, reservaram um lugarzinho para os ouvintes na Kombi que usaram para ir até Eldorado, no interior de São Paulo, município em que Bolsonaro passou momentos fundamentais de sua trajetória.

Carol é uma jornalista conhecida por contar boas histórias em diferentes formatos. Ela começou no impresso, passando por Estadão, revista piauí e outros veículos; colaborou para sites de notícias e chegou ao audiovisual. Fez roteiros para o programa GregNews, da HBO, e integrou a equipe de roteiristas do documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, indicado ao Oscar em 2020. Retrato Narrado veio para acrescentar as histórias em áudio nessa bagagem.

Reunimos algumas dicas e experiências dela para quem quer mandar bem na construção de cenas para os ouvidos.

1. Treine antes de ir a campo

Conheça e teste o seu equipamento antes de gravar pra valer. Isso vai te ajudar a entender no que você precisa prestar atenção durante a entrevista e o que vale captar antes, durante e depois de uma conversa com uma fonte. 

Carol Pires e a Kombi que a levou para cenários marcantes da trajetória de Jair Bolsonaro

“Antes de sair pra campo, o Gustavo Zysman fez alguns exercícios comigo. A gente saiu na rua com o equipamento e entrevistamos o porteiro do prédio dele, por exemplo. E o Gustavo foi me mostrando que, pelo controle do som, daria para apagar o mundo ao redor ou captar sons ambientes. Em um desses testes, ele foi jogando o som para a rua, pegando o movimento dos carros enquanto a voz do entrevistado ficava mais baixa. As sensações já estavam sendo construídas na gravação e aquilo foi abrindo caixinhas de possibilidades na minha cabeça”, conta Carol, que quando foi para Eldorado já estava bastante familiarizada com o equipamento, evitando problemas na hora das gravações.

2. Aposte em perguntas simples

Uma das cenas mais marcantes do Retrato é a deputada federal Carla Zambeli detalhando seu gabinete, que pertenceu a Jair Bolsonaro, quando ele ocupava uma cadeira no Congresso Nacional. 

“Cheguei naquele lugar e parecia uma espécie de museu de alguém vivo, porque a Zambeli preservou vários objetos do Bolsonaro ali. E a pergunta que eu fiz era assim: ‘a senhora poderia descrever como é esse lugar pra quem tá ouvindo a gente?’. Foi curioso porque eu nunca chegaria para uma entrevista pra impresso e perguntaria isso. Eu estava acostumada a fazer perguntas complexas, querendo que a pessoa confiasse em mim para contar algum segredo. E às vezes, no podcast, o que vale mais não é isso. Fazer essas perguntas aparentemente simples foi muito legal porque daí saíram respostas reveladoras”,  relembra. 

Não adianta descrever só onde você está, importa falar o que é revelador da personalidade do seu entrevistado naquele ambiente.

Carol Pires

“A  gente falou sobre bolsonarismo, direita, sobre a vida dela e no final só usei a descrição do gabinete. Entendi na edição que ela poderia ser uma porta-voz do que foi o Bolsonaro no Congresso Nacional, isso era forte. Tinha falas e cenas com ela em vários momentos do episódio, mas fui afinando e vi que ela cabia só ali, no gabinete”. Carol diz ainda que vale a pena gravar a percepção do repórter sobre o ambiente para depois,  na edição, avaliar e ver o que faz mais sentido.

3. Gaste energia no que realmente importa

Para Carol, a cena tem que ter um objetivo: revelar alguma coisa para quem está ouvindo, aprendizado que ela carrega do jornalismo literário, em que as descrições mais detalhadas são um recurso bastante utilizado.

“Às vezes, nas cenas, as descrições são de coisas que não têm relevância. Acho que só vale descrever o ambiente se tem alguma coisa reveladora sobre o personagem. Se seu personagem é a única pessoa aboletada numa cadeira de couro e todo mundo ao seu redor está numa cadeira de plástico, aí faz sentido detalhar. Não adianta descrever só onde você está, importa falar o que é revelador da personalidade do seu entrevistado naquele ambiente.”

4. Materiais de arquivo podem render cenas surpreendentes

No documentário Democracia em Vertigem, Carol precisava explicar a complexa relação entre Michel Temer e Dilma Rousseff em poucos segundos. Depois de muita pesquisa, encontrou um vídeo da posse de Dilma em que ela desce a rampa abraçada com Lula. Temer, então vice-presidente, por sua vez, ficou excluído e precisou dar uma volta para aparecer na foto, o que representou a ideia de que o match entre PT e MDB não era tão forte assim. Esta experiência ajudou no Retrato Narrado quando ela precisou reconstruir o momento em que Bolsonaro levou a facada em Juiz de Fora, durante a campanha eleitoral de 2018, uma das cenas mais eletrizantes do podcast. 

Carol Pires estava grávida durante a produção do Retrato Narrado

“A cena da facada foi super difícil. Eu estava grávida, com uma inflamação na bacia e não consegui viajar para Minas Gerais”. Para resolver o problema, Carol teve que buscar material de arquivo com áudio. “Pesquisei as redes sociais das pessoas que estavam lá e peguei todos os vídeos. A maioria não tinha nada, só gritos, mas eu encontrei um vídeo no Twitter com dois segundos do momento em que o Adélio dá a facada e um cara grita ‘pega esse filho da puta’. Isso foi a salvação para a cena da facada. O resto foi construído com minha voz, áudios das pessoas gritando e montagem da Paula Scarpin [diretora de criação da Rádio Novelo]”.

5. Faça parte da cena, se couber 

“A carpintaria da reportagem fica interessante no podcast. Quando eu, grávida, fui entrevistar o irmão do Bolsonaro, ele disse que só não chamaria a polícia por conta da minha barriga. Essa cena tocou muitos ouvintes. Naquele momento, sou um pouco da cena também, e isso ajudou as pessoas a entrarem mais na história. Mostrou que não sou uma repórter invisível”.

Ela acredita que os bastidores – ansiedade, dificuldades, preparações e caminhos do apresentador – formam um ótimo material para montagem de cenas. Algo que acontece muito em Democracia em Vertigem também, já que a Petra Costa é um elemento importante do roteiro. Mas uma última dica da Carol: cuidado para não aparecer mais que o personagem, que quase sempre é a pessoa mais importante da história.