Como um depoimento vira história

Como um depoimento vira história

Dicas de entrevista e edição para quem quer construir narrativas sem um apresentador

Como a redação aqui do Cochicho definiu, podcasts narrativos são programas roteirizados que contam uma história com começo, meio e fim. E que propõem, a cada episódio, um arco narrativo – com cenas que se articulam e criam momentos de clímax, tensão e resolução. Mas e quando a história é construída em cima de apenas uma voz, um só depoimento? 

A princípio, alguém poderia dizer: “ah, vá, um podcast de depoimento não pode ser considerado narrativo! Cadê o narrador? Cadê a locução que costura as cenas, pega o ouvinte pela mão e o coloca diante daqueles momentos arrebatadores que só as grandes histórias roteirizadas em áudio são capazes de criar?”. Pois então. Nós também caímos nessa dúvida quando criamos o Parir, podcast de relatos de parto lançado pela Trovão em setembro deste ano. 

A cada episódio do Parir, ouvimos uma mulher narrando em detalhes essa experiência transformadora que é dar à luz. Os preparativos, os medos, os alívios. Sem narrador e sem um roteiro lido por ela. Será que podemos colocá-lo na categoria (ainda em construção) dos podcasts narrativos? E o que faz um depoimento virar uma boa história?

Para a primeira pergunta (que não deve interessar a muita gente além de nós mesmos), nossa resposta é sim. Mas o que nos interessa aqui é a segunda. E para entrar nessa reflexão, usamos a nossa experiência com o processo de construção do Parir.

A maratona, passo a passo

Um dia, em 2019, entre amigos, ouvimos uma mãe contar em detalhes como foi o parto que ela tinha vivido há pouco mais de um mês. De repente formou-se uma roda de olhos e ouvidos atentos em volta dela, todos magnetizados por uns 40 minutos, escutando aquela história. Esse foi um primeiro sinal de que tinha caldo ali – o que aliás vale como dica: se uma história prende a atenção de quem está ao redor ao vivo, ela tem potencial de fazer a mesma coisa para muito mais gente em podcast.

E foi na maratona entre a ideia e a execução que surgiram as discussões sobre como fazer de depoimentos uma narrativa. Até pensamos em recorrer a uma narradora externa ou em eventualmente dramatizar relatos reais, mas como queríamos fazer um podcast sobre mulheres em um momento decisivo de suas vidas – e não sobre maternidade –, notamos que essa potência feminina ficaria bem mais evidente com um relato direto, sem a mediação (e o julgamento) de um narrador externo. Como se o ouvinte de repente estivesse de frente pra mulher, na sala da casa dela, com acesso a uma história em primeira mão. 

As entrevistas

No nosso caso, a escolha das personagens se dá a partir de indicações e também de mulheres que se dispõem a contar sua história de parto. Aqui tem uma particularidade: não excluímos nenhuma mulher que a princípio “não fale bem”. Isso porque percebemos que toda história de parto pode ser interessante, relevante e reveladora. Cabe a nós saber extrair o melhor de cada uma, e por isso é importante fazer uma boa entrevista.

Montamos um roteiro de perguntas que tenta induzir a mulher a fazer um relato de parto baseado em ações, em cenas. No começo, é preciso quebrar o gelo, e normalmente isso é feito pela velha e boa empatia: antes de começar a entrevista, a Ana Bonomi (da foto acima), que também já pariu, fala rapidamente sobre como foi a experiência dela.

Como ensina o Ira Glass, fazer perguntas que levem o entrevistado a descrever o que aconteceu é fundamental para você depois ter material para construir uma narrativa. Perguntas diretas e simples, como: “mas e aí, o que aconteceu?”, ou então, “você consegue descrever a sala de parto? Quem estava lá? Tocava música? Quais os sons, os cheiros?”.

Mas não só: o mestre do This American Life ensina também que, depois de um sequência de questões mais objetivas, fazer algumas perguntas mais amplas e reflexivas ajudam muito o entrevistado a soltar aquelas frases que valem ouro – aquelas que em poucas palavras definem o sentido geral da conversa. Por exemplo: “naquele momento, quais eram os sentimentos e ideias que passavam pela sua cabeça?”.

Enxugar, editar, musicar

Com as conversas gravadas, entra o trabalho pesado: a edição. Como fazer fluir o depoimento, tirando de cena a voz da entrevistadora, dando ritmo, brilho e cadência para um relato? 

Com o áudio e a transcrição da entrevista em mãos, vamos enxugando o texto e montando o quebra-cabeça da história de modo a construir aquele arco narrativo completo, com clímax, tensões e resoluções. 

Nos primeiros cortes, uma entrevista de até duas horas é enxugada para 30-40 minutos. E aqui vale um parêntese-dica: a transcrição é fundamental para podermos fazer uma edição precisa, sem perder informação. Mas tão ou mais importante é escutar o material enquanto se edita, porque o que às vezes no texto parece muito bonito, não funciona no ouvido. Afinal, no podcast, quem manda é o som, a voz, o áudio.

E então chega a trilha sonora. A música, que no Parir foi composta pela Luisa Puterman, é crucial. Muitas vezes, ela faz o papel do narrador externo. É ela que sublinha e chama a atenção para trechos que achamos importantes do depoimento e que dá a deixa para as pequenas pausas, os momentos que o ouvinte pode aproveitar para refletir e se conectar com a história.

Por fim, há o trabalho minucioso de ficar ouvindo, reouvindo e polindo a história para deixá-la o mais redonda possível. Sempre pensando nas emoções que queremos despertar em quem ouvir. 

Obs.: Se depois de ler o texto e ouvir o Parir você quiser conhecer outros podcasts nesse estilo, recomendamos o Radio Diaries, podcast estadunidense que faz edições brilhantes sem locução, apenas com cenas e as falas dos personagens.