Como (não) transformar bons textos em bons podcasts

Como (não) transformar bons textos em bons podcasts

Os desafios em migrar da página para o áudio

Este texto é um apanhado de dúvidas. Pode soar decepcionante, numa era em que todos têm certezas e planos infalíveis. Porém é o mais útil e o mais honesto que podemos fazer ao falar da nossa experiência de duas temporadas do Prato Cheio.

O podcast nasce de O Joio e O Trigo, uma página de jornalismo que investiga exclusivamente sobre alimentação, ciência e doenças crônicas. Com prazos exíguos, uma equipe enxuta e textos bem profundos, foi muito normal o processo de transformarmos nossas reportagens em roteiros para o rádio. Há histórias eletrizantes, a fundamentação e boa parte da pesquisa já estão feitas, temos todos os contatos à mão. Por que não? 

A ideia de fazer um podcast, inclusive, existia desde que idealizamos o Joio. Um de nós era e é ouvinte ávido desse tipo de mídia desde 2010. O outro, não era (agora é). Isso rendeu muitos debates internos, o que – ainda bem – é recorrente entre nós. 

De fato, não faltava vontade. Nem bons temas e boas ideias. Mesmo as bases de conhecimento – experiência no rádio e em jornalismo investigativo temático – já estavam dadas. O que faltava, na nossa visão, era ampliar o coletivo. Por isso, abrimos as portas e acolhemos pessoas, com o objetivo de somar energias criativas.                      

Agora, quase trinta episódios depois, indícios viraram demonstrações razoavelmente evidentes daquilo que funcionou e daquilo que não. Em linhas gerais, a simples transposição dos textos a roteiros não dá certo. Pelo menos, para nós. Por alguns motivos:

  • perdemos a naturalidade da oralidade. Por um motivo meio besta: escrevemos de um jeito, falamos de outro;
  • nossos textos no Joio são marcados por uma profunda ironia. Foi a maneira que encontramos de lidar com situações absurdas, desiguais, injustas: rir do opressor. Mas a ironia textual é diferente da ironia oral, que depende muito mais de um talento meio natural e da personalidade dos narradores, da capacidade de improvisar, de quão à vontade se está com o roteiro;
  • tendemos a ser profundamente didáticos (por vezes, chatos). O texto tem uma densidade e uma lógica de “consumo” bem diferentes do podcast. Alguns dos nossos textos trazem os nomes de uma dezena de pessoas, falam sobre organizações desconhecidas do público, abordam temas bem cabeçudos. O 37 Graus é uma das provas de que é possível fazer um podcast bem fundamentado e profundo. Mas com uma lógica de produção diferente da escrita;
  • algumas pessoas que falam muito bem para um texto podem ter uma oralidade que não ajuda em nada a um episódio de podcast. Histórias boas para textos nem sempre são boas para o rádio; 
  • acabamos ficando amarrados aos textos: em outras palavras, um texto já pronto nos deixa menos criativos, e acabamos abrindo mão de alguns elementos próprios do rádio (recursos da voz, músicas, efeitos sonoros).

Em resumo, alguns dos episódios de que mais gostamos são aqueles que esqueceram as reportagens por alguns minutos. Nós deixamos os textos em algum lugar remoto do cérebro e criamos os roteiros a partir do quase-zero: só depois de construir um roteiro sólido voltamos ao texto para pinçar ideias que podem funcionar no rádio.

Nas próximas temporadas, teremos pela primeira vez tempo e recursos para produzir apurações diretamente voltadas ao podcast. Porque eis o X da questão: investigação é algo caríssimo. Algumas reportagens são publicadas após seis, nove, doze meses de apuração. Não significa que deixaremos de transformar essas matérias em roteiro. Não teríamos motivo para abrir mão. Contudo significa que já sabemos que a mera transposição não funciona. Mesmo que a história esteja pronta, precisamos produzir de novo, repousar, refletir sobre o que dá certo no rádio.