A música no podcast: truques para quem cria e quem usa

A música no podcast: truques para quem cria e quem usa

Dicas de Mari Romano (Reply All), Felipe Ayres (Projeto Humanos) e Gabriel Falcão (37 Graus)

Se você é ouvinte de podcast, com certeza tem pelo menos uma vinheta ou música-tema preferida. Aquela trilha de abertura que te empolga para a história que está por vir ou, de tão familiar, deixa seu coração mais quentinho. 

Só de escutar o tema do Respondendo em Voz Alta, dá para sentir o riso chegando na boca. Ao soar a vinheta do Foro de Teresina, a gente se prepara para passar raiva com os acontecimentos políticos da semana. E por aí vai.

Mas se na abertura a trilha cumpre principalmente a função de marcar a identidade do programa, no restante do episódio, ela acumula muitos outros papéis. Especialmente nos podcasts narrativos.

Uma música pode ser usada para aumentar o suspense de uma cena, para dar movimento a um trecho de narração ou para pontuar uma pausa ou transição. Em certos momentos ela pode ser parte da história e alcançar mais protagonismo, enquanto em outros ela terá uma participação mais sutil, servindo como uma cama para as vozes e demais elementos da narrativa.

Entender esses papéis e as particularidades das trilhas de podcast pode ajudar tanto quem cria como quem usa. Tanto o músico que quer se aventurar nessa área como o editor que precisa definir onde e como cada elemento entra na história.

Nós conversamos com três pessoas que manjam do assunto: a Mari Romano, que você já ouviu em produções da Rádio Novelo e podcasts gringos como Reply All; o Felipe Ayres (é dele o estúdio da foto acima), que construiu a identidade sonora da temporada O Caso Evandro, do Projeto Humanos; e o Gabriel Falcão, músico do 37 Graus. Aí vão as dicas que eles nos deram. 

Dicas para músicos

A partir da identidade, crie um catálogo | Felipe Ayres 

“É legal quando você tem espaço para criar uma identidade sonora dentro do programa. E, ao pensar na identidade, o interessante é realmente criar um catálogo de humores, temas, atmosferas, ambiências. São músicas com propostas diferentes.

Então você tem temas de introdução, temas de um personagem específico. Temas para uma situação específica onde você pode encaixar uma melodia, pode encaixar uma música mais forte, mais orquestrada, ou para outra situação em que você só precise de uma nota pedal acontecendo ali como uma atmosfera.” 

Organize bem o projeto | Gabriel Falcão 

“Se você já tiver o episódio (a narração costurada com as sonoras e demais elementos) em mãos e for compor as trilhas em cima desse material, é importante organizar o projeto todinho antes de começar: já marque onde as músicas devem começar e terminar e já pense nos instrumentos que pretende utilizar de acordo com o tema do episódio.”

O que parece chato numa música pop normal, pode ser útil numa trilha | Mari Romano

“Imagine vários sinos, espaçados. Uma música recente que fiz para o Reply All  é assim, começa apenas com um “hang drum”, um gongo de metal. 

Numa música pop essas badaladas metálicas rapidamente precisariam evoluir, agregar uma segunda voz em algum instrumento, receber um ritmo. Alguma coisa precisaria mudar após os intuitivos 4 compassos. 

Mas nessa trilha, o baixo entra bem depois, com notas longas, fazendo outra coisa. A batida, que domina a música depois que entra, só vem bem ao final. Dá para imaginar uma locução que fala até a hora de libertar a batida, e então a música sobe e brilha sozinha.

Por isso, pode ser útil resistir a esse impulso de evoluir a música na métrica comum, e deixar para depois. Quem sabe até bem depois. ” 

Cuidado ao navegar pelos humores | Mari Romano

“A música tradicionalmente triste raramente fica boa como trilha de podcast. Te conto por quê: a música considerada triste costuma ser figura e fundo, melodia e harmonia. Imagina uma música no piano bem triste, bem expressiva. Essa harmonia já em tom menor, geralmente mais lenta, recebe normalmente uma melodia que passeia muito, ou então acordes cheios de peso, de tensões. Além de distrair, quase sempre fica piegas, mais impositivo do que o texto. Não deixa espaço para o ouvinte tirar suas próprias conclusões. 

A música deve guiar enquanto cria espaço, podendo dar leves dicas com notas estranhas, tristes, românticas, demoníacas, em escada (grau conjunto), ou seja, diferentes recursos.” 

A neutralidade como centro gravitacional | Mari Romano

“Músicas minimalistas e que evoluem em loop são ótimas para gerar movimento sem agregar muito significado, como se dissessem ao ouvinte: ‘acompanhe comigo esse momento da história, prometo que ele vai dar em alguma coisa logo mais’.

É legal que a música em si não se destaque demais em frequências similares à da voz, como um solo de sax alto. Caso deseje muito usar, é possível atenuar aplicando um reverb e diminuindo o volume, para aproximar esse instrumento da malha sonora, sem ser intrusivo.”

Músicas ajudam a construir imagens | Felipe Ayres

“Diferente do cinema, no podcast, como não há uma narrativa visual, a música tem mais espaço para ajudar o ouvinte a criar uma imagem na cabeça. Quanto mais você trabalhar na complexidade da progressão da música ou criar detalhes e camadas, mais você tem esse poder de influenciar a imagem que vai se formar na mente de quem está escutando.”

Antes de finalizar, escute com cuidado | Mari Romano

“Nas etapas finais da mixagem de uma trilha para podcast, ouça com o volume bem baixinho. Se algum instrumento se sobressair muito, abaixe o volume dele. 

Se tiver tempo, ouça seu trabalho em diferentes fontes. Teste no auto falante do computador, na caixinha portátil com bluetooth, no fone do celular, no carro. Afinal, é assim que ele será ouvido. Eu também gosto de exportar em menor qualidade para ver como o mp3 vai soar na pior das hipóteses. 

Esse é um bom teste para verificar se certos instrumentos (particularmente os cheios de graves ricos e potentes) não ficam distorcidos em certas fontes sonoras que não ‘falam’ aquelas frequências. Isso acontece porque o ouvido humano capta, aproximadamente, de 20 Hz até 20.000 Hz, e nem todos os alto-falantes são capazes de disparar todos os sons nesse intervalo.  Procure pela ‘resposta de frequência’ de cada aparelho para obter essa informação.”

Dicas para editores

Use a mudança musical para fisgar a atenção do ouvinte | Mari Romano

“Tanto a entrada quanto a saída da música chamam a atenção dos nossos ouvidos. Afinal, o ser humano é craque em observar e reconhecer padrões, então conecta som e texto naturalmente. Fomos treinados para isso com horas de Tom de Jerry e horas de filmes vistos. É interessante usar essas mudanças na forma da música a favor da narrativa, em conjunção com o texto. 

Claro que quebrar essas convenções também pode ser interessante. Por exemplo, começar um chocalho logo após o narrador falar sobre algum segredo a ser descoberto pode ser uma marca muito clichê para alguns tipos de programas. É importante seguir seu ouvido e o que soa melhor no podcast.”

Aproveite para brincar | Mari Romano

“Teste diferentes fades, cortes, posições. Novos significados para o texto podem se abrir diante dos seus ouvidos, surpreendendo para o bem. O “sobe som” após o término de um parágrafo pode ser exatamente o necessário para melhorar a compreensão da história, deixar o ouvinte digerir aquela informação por alguns segundos. Deixar a narrativa respirar na música. 

Confie no seu ouvido e no ritmo intrínseco à fala. Nas quebras que parecem mais certas para você. Tente estender uma pausa na locução para entrosar com música e para que, juntas, elas elevem o texto e o programa.”

Pause, volte, ouça | Mari Romano

“Depois de tantas edições e minúcias, dê ré, bote o cursor muito antes de onde estava. Agora dê o play. Provavelmente você vai fazer isso várias vezes enquanto estiver trabalhando em um trecho. Volte à transição que leva ao início da frase musical na qual estava trabalhando para sentir como a edição fica no contexto. É preciso “vir de antes” para sentir.

Ouvidos (e coração) abertos aos ‘acidentes’ na hora de posicionar a música. Por sorte, eles costumam ser felizes. É quase como no mantra do Bob Ross, pintor ícone da televisão americana: ‘Não há erros, apenas acidentes felizes’. Um teclado pode soar justo na hora de uma palavra-chave e ficar bem legal. 

No entanto, fique atento para não desviar o significado para um lugar indesejado. Por exemplo, se há um acorde feliz no momento em que se fala de uma explosão nuclear, ou um acorde triste aparecendo num ponto em que a história ainda está ambígua, e só vai se revelar triste mais adiante.” 

Dicas para editores e músicos

Tenha referências | Felipe Ayres

“Isso vale tanto para quem cria o podcast como para o compositor, para que os dois possam falar a mesma língua. É preciso escutar e perceber bastante as trilhas, por exemplo, em filmes. Notar como a trilha sonora tem a função de enaltecer certos humores e certas cenas. A música está sempre a favor da imagem ou a favor da narração. Um compositor legal é o que sabe fazer a música para enaltecer o projeto, e não o próprio trabalho.”

(complemento do Gabriel Falcão)

“Eu sempre busco inspiração em músicas que tenham uma atmosfera que lembre o tema da temporada ou episódio do podcast. No 37 Graus, por exemplo, se a palavra-chave é sci-fi, eu procuro discos mais psicodélicos e filmes nessa linha para conseguir pensar nos timbres e temas.”

Trabalhe com stems, além da música completa | Mari Romano

“Stems são agrupações de instrumentos que totalizam na música. Com eles podemos editar a deixa musical ao sabor do programa. A percussão, por exemplo, pode parar em uma ponte crucial da história e voltar numa hora reveladora. Uma música composta de instrumentos graves, pianos e percussão poderia ser subdividida dessa maneira:

  • BAIXO: baixo.wav + sub_synth.wav
  • PIANO: piano1.wav + piano_enfeites.wav
  • PERCUSSAO:  congas e maracas.wav”
(complemento do Felipe Ayres)

“Até porque isso faz com que o editor possa ter uma certa variação. Às vezes ele curte essa música, mas essa percussão em especial vai atrapalhar alguma coisa na história. Então o editor tem como tirar a percussão e usar só a parte do piano, por exemplo.”