Opinião | O podcast na era da egolatria e do empreendedorismo
Cheguei atrasado ao mundo do podcast. Mas, assim, atrasadíssimo para os padrões do século 21. Alguns amigos insistiam há anos que eu precisava parar para ouvir o que estava acontecendo. Que havia coisas incríveis. Que aquilo era o futuro. Como sempre, relutei. Passei a ouvir pra valer em 2019.
Encontrei um punhado de coisas ruins. E muitas coisas extraordinárias. Fiquei boquiaberto com a originalidade das histórias do 37 Graus. O Encruzilhadas é extasiante. Os podcasts da Revista Anfibia, da Argentina, têm um ritmo interessante. A qualidade narrativa dos novos podcasts da Rádio Novelo tem sido impressionante.
Existe um salto inegável na qualidade do texto, no apuro estético, nas possibilidades tecnológicas. No entanto, no fim do dia, tudo me leva ao bom e velho rádio. Quando me falavam dos podcasts, eu me indagava como seria possível que houvessem reinventado tudo em torno de algo tão simples. Esperava cruzar um portal que me levaria a um universo sem paralelos, algo enlouquecedor – disruptivo, para usar o vocabulário startupiano que parece frequentar a podosfera.
Recentemente, a turma do Prato Cheio andou trazendo alguns elementos que compõem receitas de sucesso. Vejamos:
- use sonoras curtas
- use elementos afetivos
- crie quadros fixos para fidelizar e divertir os ouvintes
- construa a sua pessoa de modo a criar laços com o ouvinte
Tudo isso estava nos manuais de qualquer rádio. Há algo que me incomoda profundamente na discussão sobre podcasts. Algumas pessoas parecem mergulhadas na piscina do Vale do Silício, para quem tudo está sendo inventado no século 21. É como se essa geração houvesse criado o mundo em seis dias – e trabalhado no sétimo, porque a turma realmente desconhece o direito à preguiça.
Esse pensamento ególatra parece haver dominado tudo o que envolve processos criativos. Só consigo apelar ao sociólogo Zygmunt Bauman: na sociedade do consumo, para sermos, precisamos nos converter em mercadorias. Para seguir no diálogo com o léxico das startups, precisamos provar nosso “valor único”. Logo, precisamos ignorar – ou fingir ignorar – tudo o que veio antes. A própria palavra “disruptiva” guarda em si essa ideia de oposição, de ruptura com o que havia sido construído. Só que isso é uma mentira.
- A Uber apenas privatizou uma parte e deu escala ao serviço de transportes
- O Airbnb digitalizou e deu escala ao serviço de aluguel por temporada
- O iFood levou para a tela do celular o que antes era feito usando o telefone
É óbvio que há outros elementos a serem levados em conta nessa análise. A simplificação excessiva é apenas uma maneira de seguirmos nessa discussão sobre a lógica que rege o mundo dos podcasts. Vamos combinar: muito do que está sendo feito são cópias melhoradas do que foi realizado nos últimos anos ou nas últimas décadas.
E não há problema nenhum nisso. Problema é continuar fingindo que estamos criando tudo a partir do zero. Fiquei onze anos longe do rádio. Entre 2004 e 2008, trabalhei na Jovem Pan AM e na BandNews FM. Aquele era um universo enlouquecedor, mas havia muita gente boa, muito aprendizado ali dentro. Anchieta Filho e o Jornal da Manhã foram o despertador de dezenas de milhares de pessoas durante muito tempo. Ciro César, Franco Neto e Antonio Freitas davam um tom de solenidade às notícias. Reginaldo Lopes operava a mesa de som como um polvo com tentáculos infinitos. Milton Neves se conectava com o público de uma maneira única. Tatiana Vasconcellos apresentava com uma autenticidade ímpar em tempos nos quais a autenticidade não havia se convertido em commodity. No mesão de apuração, ponto inicial da carreira de qualquer radialista, aprendia-se a ser repórter. Paulo Edson Fiore me ensinou a ser rigoroso na apuração.
Tenho profundas discordâncias ideológicas com algumas dessas pessoas, mas isso não me impede de admitir que fazem parte da história do rádio brasileiro. E que essa história é coletiva. Quando o mundo vinha abaixo, na Jovem Pan, em minutos estávamos organizados para cobrir da melhor maneira possível. A rádio chegava a mandar meia dúzia de repórteres para um mesmo lugar. A equipe de edição entrava em cena para já selecionar as falas que iriam recontar a história na manhã seguinte.
Essa é uma diferença fenomenal entre rádio e podcast. Naquele tempo, a rádio era o mais efêmero dos veículos: trabalhava-se um dia inteiro para produzir uma notícia que desapareceria assim que fosse ao ar. Agora, é todo o contrário. O podcast tem uma vida longuíssima quando comparado à velocidade de nossa era. Essa característica me parece encantadora.
Apesar de tudo, quando decidimos criar o Prato Cheio, em 2019, as velhas normas do rádio seguiam em pé. Inclusive, a norma da egolatria, agora incensada pela fogueira de vaidades do século 21. Colocar a voz em jogo mexe com os ânimos. Porém, no nosso podcast, decidimos resistir a essa ideia e seguir fiéis ao espírito de O Joio e O Trigo de ser um projeto construído coletivamente.
- não criamos um perfil de rede social para o Prato Cheio, deixando claro, para dentro e para fora, que se trata de um projeto do Joio. Isso é muito importante do ponto de vista editorial;
- desincentivamos a que as pessoas do Prato Cheio usem as redes sociais para uma promoção individual excessiva;
- adotamos rotatividade entre os narradores. Isso comunica aos ouvintes – e aos egos – que importantes são as histórias, e não os narradores.
Todas essas decisões têm potencial de um impacto negativo na audiência, mas audiência nunca foi a nossa medida única e central de êxito. Sempre nos preocupamos em contar boas histórias. O que isso trará de resultados é consequência. Do nosso ponto de vista, ser inovador no século 21 é não se deixar transformar em mercadoria.
Artigos de opinião não refletem necessariamente a visão do Cochicho.